Sobre uma certa viagem

12:06
As obrigações para com o mundo colocavam um Rapaz neste exato lugar, nesta exata hora.O banco do ônibus era o último lugar no universo que ele gostaria de estar agora. A coletividade tornava-o incapaz, a mercê de quem viesse e se servisse do espaço em anexo. Achava realmente desconfortável estar assim tão próximo de algum possível contato aberto com a humanidade, em toda a sua amplitude, mas até agora o cosmos conspirou a seu favor: o território conquistado ainda se encontrava imaculado.

12:17
Seu constrangimento era evidente; fones de ouvido, mochila no colo e um olhar fugidio eram suas muralhas. Até agora ninguém havia ousado quebrar o silêncio imposto, nenhuma senhora sedenta por frivolidades ou trabalhor disposto a resolver as desigualdades do mundo com conversas politizadas. Tudo corria bem, dentro do possível. E dentro daquele ônibus saculejante.

12:21
A porta traseira abre, pessoas são empurradas e um profeta de coletivos assume posição de combate diante da catraca - ele era a perfeita figura de um algoz. A paz até então reinante ruiu.

12:24
Palavras desconexas, relatos de uma vida sofrida (e recorrente entre esses profetas; eles podiam até ter retórica, mas nem um pouco de imaginação), panfleto com mensagens genéricas e um pedido por trocados, em troca de paz de espírito e Jesus. O Rapaz engatilhou sua melhor expressão estóica e lutou como pôde. Queria apenas que aquela provação acaba-se. Talvez até passar uma lição para o torturador profeta: "Você acha mesmo que Jesus foi o semideus templário e ariano que você fica caricaturando? Pare de assistir televisão e vá ler um livro...".

12:25
Quando achava que toda a emoção da viagem havia terminado, o Rapaz de repente sente seus olhos atraídos de volta à catraca. Não esperava encontrar logo ali alguém que despertasse seus sentidos assim tão abruptamente. Conseguiu se manter aparentemente calmo, mesmo ficando arrepiado. Uma mulher que o deixasse assim, arrepiado, era algo raro. Era uma beleza rara, dessas que não se encontra em um ônibus. O Rapaz ficou sem ação.

12:25:47
Ela finalmente segue pelo corredor, buscando um lugar. Ele tenta, sem confiança, fixar seus olhos nas correspondentes esmeraldas da mulher. Naquele instante reconhece o valor de uma pedra preciosa: a sua raridade. Entende porque homens mataram e escravizaram por causa de um mineral tolo. Eles sabiam que essa simples pedra escondia uma mulher como aquela dentro de si! Agora era a mulher quem possuía a pedra em si, mas não a escondia. Exibia-a com orgulho e naturalidade.

12:25:55
Cada pelo do corpo do Rapaz tenta se lançar ao ar, buscando o infinito longe deste exato lugar, desta exata hora. Querem escapar do que temem acontecer quando a mulher finalmente se sentar ao lado dele. Ela está tão próxima!

12:26:55'15
Passa em sua cabeça, em sequência, cada figura feminina que registrara em sua vida. Nunca houve tamanha beleza, nem magnetismo... Se sentia atraído por ela como um imã tolo e poderoso demais para seu próprio bem.

12:26:56'15
Ela se senta. Ele não sabe o que fazer, nem se deve fazer algo, na verdade. Apenas sorri.

12:27:02'00
"Aceita uma bala?"

12:27:04
Ela aceita e sorri de volta.

13:06
Seu ponto passou havia 15 minutos, mas ele não se importava. Cada minuto da conversa valeu a pena, e o número de telefone anotado na sua mão simplesmente o fazia esquecer de todas as outras obrigações para com o mundo - quem se importava? Quem merecia a sua atenção agora era aquela com quem ele esperava descobrir a beleza da humanidade. Enquanto isso, o ônibus segue saculejante por seu caminho cíclico, sem fim. Os profetas de coletivo, os trabalhadores e as senhoras decoram a viagem e todos os possíveis futuros que irão descer dela.