Carta a nós dois

Você faz falta, mesmo sem nunca ter sido minha. É engraçado perceber que você, sua presença, me implanta memórias falsas de um passado feliz. Maldita falsa nostalgia. Talvez isso seja resultado de todo o tempo gasto por mim imaginando como seria bom finalmente viver um romance, ainda mais com você.

Você. Devo lhe dar um nome? Se daqui a alguns anos eu reler esses pensamentos, já serei um outro eu, será que ainda recordarei do seu gosto? Será que acordarei e encontrarei o seu rosto? Sua imagem me traz dúvidas. Memórias e dúvidas, falsas e hipócritas. Tudo corre como em um sonho: o absurdo é latente, eu sei que estou sonhando, mas torço para que os cinco minutos que me restam de sono durem, perdurem, se perpetuem.

Estou farto de despertar, com um tapa da realidade, de minha droga onírica. Estou cansado, entretanto, de ser incapaz de sentir na pele a vida, o vento, você. Meu mundo está fadado a ser marginal. Às vezes me parece que sou etéreo, impossibilitado de tocar aquilo que é tangível aos outros. Deve ser tolice minha. Posso fazer o que quiser, sou livre! Posso te olhar, posso até te dar um nome. É tudo que eu quero. É tudo que eu posso.

Eu quero também poder transformar meu sonho em um reflexo do real. Desejo não ter mais desejos, já estou saturado deles. Quero apenas realização... Talvez esteja pedindo demais, sinto que devo ser mais justo. Agradeço, portanto, pelo maior favor que você poderia me conceder. Estou profundamente agradecido por você ter me ouvido, isso é tudo.

Atenciosamente
Arthur

Enxaqueca

Uma profunda dor de cabeça o atormentava naquela noite. A caneca de cerveja normalmente não seria o melhor remédio, mas a noite clamava por uma. Afinal, eram três horas de uma quente madrugada de sábado, três malditas horas depois de resolver sair com amigos do tempo de escola. A noite trouxera resultados péssimos. Estava agora apoiado em seus cotovelos na bancada de um bar, olhando para dentro de seu copo meio vazio, esperando que o álcool fizesse efeito. O sangue ia se diluindo em suas veias na medida em que suas pupilas iam se dilatando. Queria esquecer as três últimas horas de sua vida, resgatara o passado do fundo de sua mente e se arrependera disso.

Sabia que chegara, horas mais cedo, no restaurante combinado esperando encontrar velhos companheiros. Não contava era com a presença de um antigo amor. Nem sabia se poderia chamá-la de amor, chamava-a de Luiza, isso bastava. Junto a ela havia também um acompanhante, alguém que passou despercebido na memória, mas que sepultava enfim a esperança que perdurara uma vida. E a flor do menino, que amadurecera anos esperando correspondência, secou ao cabo de uma hora. Luiza era virtualmente perfeita, e vê-la inatingível ao seu lado foi o derradeiro golpe da noite em sua cabeça. A dor latejava incessantemente. Após o encontro ele rumou entorpecido pela rua, a decepção o guiou para longe dali.

A dor de cabeça agora era boa, fazia-o esquecer o que se passara. Havia ao seu redor apenas decorações vivas de um teatro trágico. Pensou em destino, em sorte, e voltou seus olhos para sua bebida. Olhando ainda para o copo, ouviu o barulho repentino da rua entrar no ambiente e rapidamente cessar. A porta do bar se abrira para a passagem de uma figura mística. Uma mulher belíssima, alta e de fulvos cabelos longos atravessou devagar e decidida o ambiente. A luz indireta nas paredes trazia à vista uma imagem etérea, mas a figura feminina a perfurou lentamente. Horas antes, malditas três horas antes, essa mesma mulher o havia tirado desse mundo, agora chegava puxando-o de volta com violência. Ele se viu sem ação, seu copo meio cheio vacilou em sua mão. Antes de qualquer instinto ou reação, Luiza se sentou ao seu lado. Ela falou a meio tom, sem encará-lo: "Por que você saiu daquele jeito? Deixei até meu irmão lá no restaurante, queria te ver. Estava com saudades de conversar contigo". Irmão?

Finalmente, a realidade lhe acertou em cheio no rosto, levando junto a enxaqueca. A noite ganhava uma feição mais agradável agora, e a vida ganhava uma luz. O calor e o burburinho foram esquecidos junto com as horas anteriores, detalhes apenas. Começava assim um novo dia, e mesmo sem ter a certeza, havia consigo a ingenuidade necessária para sonhar.

Suave

Uma palavra lhe escapa da boca
E desnuda assim um sentimento
Como ave que se lança ao vento
Após sair da mais alta toca

Acomodada do topo de um tronco
Fino e belo ao frio do relento
Finos lábios, tais quais ornamentos,
Soltam aves com uma força rouca

Consoantes com o doce som
Que propaga ondas pelo ar
Onde voa sua ave-falar

Ao ouvido um ruído bom
Asas das palavras a voar
E enfim em meu ombro pousar

Dândi

A musa atua, simples,
Escondendo sua divindade
Dos outros sem, na verdade,
Saber seu real papel.

Na peça aberta ao céu
A musa muda de idade,
De trajes, de vaidades.
Declama suas ideias,

Conquista sua plateia.
Entro os atos, na passagem,
Longe da multidão

Se fecha em seu camarim.
Aninha-se entre cetim,
Champagne e solidão.

Despertar

Pouco reparara antes no parque em frente a seu quarto, sempre vazio. Se assemelhava a um bosque europeu, calvo e organizado. Sua infância fora próxima a esse parque. Um período recente, mas já afastado pelo abismo da adolescência e que levara consigo a simplicidade e a alegria que o local trazia. A vida tinha se tornado agora curta e efêmera para se viver, o imediato valia mais do que o prazer do incerto. Pensava nisso quando resolveu se sentar à sua janela e assistir ao Sol trilhar o céu da tarde. Havia um mundo esperando por ele fora da porta do quarto, mas se convenceu que tardes de domingo mereciam uma paz, mesmo que forçada, para dar trégua ao corpo cansado. Olhou para fora e enxergou o parque.

Naquela específica tarde estava ela ali, sentada a um banco distante, segurando um livro e balançando despreocupadamente sua perna rente ao chão. Um movimento fútil, difícil de chamar a atenção de olhos distraídos. Contudo, foi ele que o hipnotizou, deixando-o fixo em seu posto. Não deveria ser assim, ele só queria ver passar o tempo, ganhara agora uma ocupação que o induzia a um transe bobo. A trégua deu lugar a uma avassaladora curiosidade por saber quem seria ela. Incomodamente, a imagem abrira portas para pensar rostos e personalidades. Desacostumado a enxergar tão pouco e ver tamanho conteúdo, deixou-se estar naquele momento infinito e inerte no tempo. Encarar o baque do esclarecimento foi uma tarefa ingrata a princípio; a mulher (seria uma menina apenas?), na medida em que o instante se tornava período, tomava formas e deixava-se etérea na mente dele. Cabelos negros, fios de azeviche, tornavam a trilha do Sol mais delineada sobre ela, e ela respondia à mágica da cena com indiferença. Ele estava com medo agora. Pensava em como saciar o espírito de outra forma que não ir lá de imediato e perguntar ao menos o nome da mulher. Para evitar o impulso, agarrou firme no parapeito e desejou esquecer tudo, pensou no branco, no zero, no nada.

O barulho de uma porta se abrindo o acordou, assustando-o. Parou para se lembrar onde estava, sabia ao menos quem era. Ou quem deveria ser. A janela sumira e ele estava em pé em frente a um espelho. O ambiente se assemelhava a um banheiro, seu banheiro. As mãos estavam doloridas por estar agarrando fortemente as bordas da pia. Levantou os olhos e encarou o espelho: atrás de si, refletida na imagem, estava uma mulher parada na porta, linda e com cabelos de azeviche. Ela o olhava de forma afetuosa e feliz, enquanto ele voltava seus olhos para o próprio reflexo e tentava entender o que estava acontecendo. Sentindo então ser envolvido por um tenro abraço, olhou a mulher e desejou se lembrar de tudo. Ela lhe beijou a face e foi sentar-se na cama do quarto, em frente à porta do banheiro. Pegou um livro ao lado e começou a ler distraidamente, balançando sua perna rente ao chão. Ele lavou o rosto, suspirou ao se voltar para trás e perceber que não havia enganos, o mundo era o mesmo de antes. Apenas acordara para a vida.

Fugazes

Tão fugazes e imprevisíveis
Os movimentos das suas mãos
De tão delicadas que são
Me elevam a certos níveis
Que meus olhos tão sensíveis,
Acostumados com a escuridão,
De tão delicados que são
Se cerram imcompreensíveis
Às luzes, e suas mãos, livres,
Buscando as minhas mãos
De tão delicadas que são
Me dominam irredutíveis

Buscando um princípio

"Tudo bem, sou uma criança e tenho consciência disso. Mas por que não posso decidir sobre minha vida?!". Eram onze horas de uma estagnada noite. Mesmo a ausência quase total de luz no quarto não impedia Dante de enxergar as paredes pintadas. Ele riu ao lembrar-se de quando começara sua obra de arte. Paredes brancas de um quarto pedem o toque pessoal de seu residente; no caso de Dante, a decisão de registrar dinossauros foi a melhor maneira de expressar o momento. Os giz de cera rasgavam o limite de seu cárcere quando sua mãe apareceu de supetão na porta, trazendo ares de reconciliação e levando um tornado de frustração. Horas antes ela o havia posto de castigo por não fazer seu dever de casa, preferira escrever poemas no quintal de sua avó. O arrependimento durou o tempo de voltar para casa, mandá-lo para o quarto, preparar a janta e ir liberá-lo da punição. Dante não entendera por que sua mãe, ao ver as paredes cobertas de pinturas rupestres, manifestara decepção e cansaço. Esperava receber um elogio, ou talvez fazê-la esquecer dos problemas que vinha enfrentando. Afinal, já haviam passado por dificuldades antes.

"Sei que não podemos comprar brinquedos agora, nem ir ao cinema... Mas qual será o problema de tornar meu quarto mais bonito?". Dante olhou para sua criação e procurou por um instante entender a reação de sua mãe. Não julgava a pintura uma sujeira, mas sim algo belo. Era realmente algo, talvez não tão belo, mas era algo. Algo melhor do que sentar e ver o mundo seguir. Receber deveres idiotas era como se sentar, fazê-los era ligar o canal do mundo na televisão. Dante abriu um largo sorriso, sabia que iria bem no final, contava com sua capacidade de se sair bem sem estudar muito.

"Mamãe ainda está na sala trabalhando, coitada. Talvez amanhã ela veja o desenho e fique mais feliz". De repente, a porta do quarto se entreabriu e o rosto de sua mãe surgiu, cansado. Ela não percebeu que, ao sorrir vendo os dinossauros coloridos, Dante também sorria pelo mesmo motivo. Decidida a se redimir no dia seguinte, ela entrou furtivamente e beijou na testa de seu filho um desejo de boa noite silencioso. Dante o recebeu quieto, esperou ela sair e voltou a divagar sobre os recentes acontecimentos. Não entendia todos os processos que ditavam a situação, mas sabia que a mente humana era complexa demais, o imprevisível deixava-o confuso. Após alguns minutos de profunda reflexão, Dante virou de lado e dormiu, esquecendo enfim dilemas e conjecturas. Voltando ao simples escuro de antes, sonhou com dinossauros coloridos.