Escracho

Vem dizendo que me ama
É para o nosso bem
E pede desculpas

Minha hipocrisia compartilhada
Só podia ser curada
Com teu sangue ou tua lágrima

Me esquece

Ou se joga de um prédio
E me leva contigo


Daquele tempo sobra o fim e nada menos

Um parque na orla do Centro, que dava vista para o aeroporto e tinha uns bancos de pracinha incongruentes com os carros que passavam perto dali, pisando oitenta e tossindo buzina. O ar estava pastoso da neblina porque era cedo e o sol não prometia vingar, mas quem vingava em final de julho? A segunda banda de maçã do ano amadureceria com efeito para eles só dali a uns dias. A mãe desfrutava de uns dias mais tranquilos no escritório e levava seu pequeno ainda em férias para conhecer seu trabalho e a pracinha dos aviões. Caminhavam perto da murada ao largo do passeio público, passando por uns desocupados que alentavam ao som das turbinas misturado com o chiado de marola. A mulher gostava de visitar esse lugar, último chão dos seus pés na terra natal antes de migrar durante alguns aniversários para um país frio de pessoas frias e cerveja quente; quer então sempre viver de novo, reviver, sobreviver aqueles últimos verões de moça. Seu olhar perdido na baía contradizia o foco de seu filho, tão espantado com os passarinhos de metal carregando luz e gente e mala e tudo pra longe dele e dali. O olhar dela se perdia no chiado das marolas.

E foi passando que ela passou por um permanente homem na murada. Ele parecia um portentoso guarda do mar, com seus óculos escuros e o cigarro que acendia um isqueiro bem característico. O fogo chamou a atenção da mulher, que o reconheceu de pronto. Fogo verde. Esse aparato incomum, só quem o possuía era um velho conhecido. Hesitou, rememorou e tomou iniciativa de abordá-lo, com o filho firme na mão. Perdeu o compasso da respiração faltando três passos. O homem tinha o rosto virado serenamente para as marolas, mas parecia que as observava mais com os ouvidos. Gostava de inclinar a cabeça de vez em quando, de forma a apurar a audição, e a mulher achou graça desse movimento quase involuntário.

- Vem, Dante, vamos sentar aqui no murinho. Quer ficar olhando os aviões?

- Lá, mãe, posando!

- É mesmo, vamos contar quantos pousam.

O homem aspirou o cigarro e virou o rosto para aquele pouco de família ao seu lado.

- Lívia?

Tamanha era a justiça daquela expressão, que ela se conformou e apenas fez que sim com a cabeça. Ele era pura frieza, ou melhor, distância. O homem ao seu lado emanava distância na careta vazia que fazia ao encarar incerto a mulher, até que germinou um sorrisinho complacente no canto dos dentes. Ela se rendeu:

- Oi.

- É, oi - ele ri por quase um segundo - Bom te encontrar, Lívia. Bom mesmo...

- É...

- Irônico, mas bom.

- Pois é, mas que coincidência, né? Também é bom te ver, Dante.

O garotinho se virou para responder o chamado da mãe. Ela afagou o cocuruto do pequeno e se voltou para o homem, que, a dois palmos, parecia estar encarando um infinito depois da esquina. Os pulmões dele expulsaram fumaça bem no meio da neblina.

- Que foi, mamãe?

- Nada, filho. o nome do tio é igualzinho ao seu, viu? Vocês dois têm o nome mais lindo da terra.

- Mas eu nunca vi esse tio.

- Olha os modos, Dante! Isso é falta de educação.

- Deixa ele, Lívia! Ele tem razão, não é, rapaz? É bom ser sincero mesmo. Então vou te contar uma coisa: é que eu já fui namorado da sua mamãe, faz um tempão.

A mulher ficou corada, mas foi incapaz de repreender a ousadia honesta do homem que falava ao seu filho. Para ela, todo aquele passado que acontecia antes de sua viagem permanece lá, bem guardado, na esperança de ser eventualmente esquecido. Na cabeça repassava agora todas as justificativas que se impusera para seguir na sua diáspora. Houve o medo... Houve mesmo tantas coisas, planos, algumas promessas, as decepções. Não pudera esquecer os olhos verdes de Dante, é claro, nem do prazer dele ao tocar sua pele branca como cocaína. Seu corpo viciara o dele e acabara por fazer tanto mal, que só mesmo diluído em prazer. Quando ele a olhava, era para olhar no fundo da alma e fazer a culpa e o desejo formigarem nas pernas deitadas. Aquelas quatro pernas se entrecruzavam e...

- Escuta, Dante, deixa meu filho fora disso. Filho, já foram quantos aviões?

- Foi quatro gaviões, mãe. Tem mais um ali, olha!

Ela não entendia por quê ele escondia os olhos por trás dos óculos escuros. Nunca fora seu estilo. O ruído de uma turbina de avião desequilibrou seu olhar e ela se pegou fitando direto nas lentes escuras. O pudor lhe virou o rosto e ela não viu quando o homem se voltou para o mar e desabafou um suspiro quieto, depois tragou. Ele continuou a embalar o azul baiano até que ela pegou de leve na sua mão.

- Que droga. Desculpa.

- Ah, não agora, Lívia.

- Quando?

Outra tragada.

- Se ainda fosse ontem...

- Já foi, não dá.

- É, já foi. Não precisa tentar.

- Poupe-me das suas filosofias. Não quero tentar, assim como não quis.

- Está aí uma grande verdade - as narinas sopravam devagar, atrasando o tempo para pensar - Sabe, ontem eu te amava. De quem é o menino?

- Não é nosso, óbvio, ele só tem três anos... Alguém deu a luz, é adotado, eu só dei carinho. E o nome.

- Justo.

- Você sempre dizia isso.

O garoto apontou para uma barca que cruzava a baía e chamou sua mãe. Ela rapidamente voltou a atenção para ele e se fez esquecer. O céu leitoso tirava toda a graça de viajar naquele barquinho, explicou a mãe, pois então eles iriam outro dia. Ela penteou a franja do pequeno e se calou.

O homem fez menção de se levantar. A mulher levou novamente suas digitais para perto das dele, mas conseguiu retrair o toque. Não se achava no direito de atrapalhar a paz em que ambos reinavam até alguns aviões atrás, nem queria lembrar que fora em um deles que ela foi embora para nunca mais. O nunca primeiro ainda durou pouco, depois durou muito, e até ontem mesmo esse nunca era definitivo. O homem se virou devagar e se içou sem muito equilíbrio. Ela ainda não entendia o porquê daquele olhar que, se antes era fogo verde, agora era maresia escondida. Decidiu perguntar.

Ela fez menção de falar, mas o homem abriu uma bengala retrátil e tateou alguns passos incertos. O barulho dos toques do apoio se perdeu no ruído chiado pelas marolas. A criança perguntou enquanto Dante virava já no infinito depois da esquina:

- Mãe, chama aquele tio pra voar de gavião com a gente?

Ritmado

Estou enfadado de fado.
Saudade, a besta pantera,
Devora agora a hora.
Pudera ser dela passado!

Em dado momento atrasado
Quis dela somente a vera.
Verdade importa agora
Somente à pantera e ao fado...

Quisera morrer um bocado
De ruga e viver; de alento
À fera ao passado que impera.

Porém a verdade, a vera,
Ignora a passagem do tempo
Que aperta o olho enrugado.

Feliz aniversário

A palavra dita é corrosiva.

Lidar com a força de um som que sai e instantaneamente marca a pele é demais para alguém que ama e se encontra no meio de um furacão. Diabos, na minha praia nem ao menos ocorrem furacões. O Rio de Janeiro não abrigava furacões nem terremotos antes de conhecê-lo. Essa geografia me deixa enjoada.

O diálogo sempre foi difícil e isso era esperado, foi tudo muito novo e vertiginoso. O garoto mal me conhece e vende a alma, vende promessas e me compra o coração. Demorou, mas eu vendi também. Dei, na verdade. Não conhecia o chão que estava pisando no maldito dia em que extendi a mão e deixei ele entrar. A vantagem dessa confissão escrita é que eu não tenho que falar nada na sua cara (de pau). A palavra dita é corrosiva. Não quero corroer, quero só dar um tapa bem forte na bochecha esquerda dele e olhar enquanto ele fica vermelho sem as tais palavras. É de vergonha? Deveria ser. Eu iria me virar e sair, se soubesse sair sozinha daí dessa sua praia distante; sairia com o nariz empinado e o peito acelerado, batendo fundo lá pertinho do chão. Ele iria se arrastar pelo asfalto e ficar sujo de guimbas e de poeira.

Ele, ou você, sei lá... Ele, melhor assim, não estou com coragem ainda de te olhar nos olhos de novo. Ele se preocupou tanto em me fazer feliz. Ele conseguiu. Não mais? Sei lá. Agora não estou com coragem. Estou enjoada. Na minha casa a família pergunta "e como anda o garoto?" sem saber que você foi a melhor coisa que me aconteceu nesses últimos tempos. Eles só liam o meu rosto corado do amor estampado na navalha. Suas palavras tão lindas, de deixar qualquer uma derretida, foram carvão e navalha. Agora me deixa de lado que eu tenho que curar o corte estúpido que você queimou em mim. Para de ser perfeito, para de me fazer te amar, pra eu poder respirar um pouco fora dessa fumaça toda.

Eu quero te ferir! Quero muito... Desgraçado, eu quero te cortar com a mesma força das palavras ditas por ele. Só não quero corroer. Falar não vai levar a nada, só à corrosão. Quero deixar cheio de hematomas. Fechar a mão e levá-la direto à sua bochecha esquerda pra fazer o vermelho ficar roxo. Assim você acordaria amanhã e iria se ver no espelho com muita raiva de si mesmo, e você iria socar o espelho. O vidro iria cortar a sua mão - eu seria esse caco. Ia afundar na sua pele, mas não iria te corroer porque eu sou uma idiota. É que a mulher tem disso, amar o garoto e deixar ele te machucar sem deixar de amar. Os homens tinham que aprender um pouco com isso e ser idiotas também, pois vocês só sabem prometer e mentir. Só sabem uma coisa, a mesma coisa, são sempre promessas e mentiras.

Meu deus, não consigo me livrar desse enjoo. Hoje é o aniversário da nossa comunhão e eu aqui, tentando salvar os cacos de vidro sujos do seu sangue. Considerando tudo, esse sangue também é um pouquinho meu, desde que você me sequestrou o peito e disse que ia fazer uma casa pra ele pertinho do seu...

Escuta, garoto, eu te amo. Pro inferno com essas palavras todas. Só quero você de volta quando eu me acalmar.

Aquário e molotov

Meu tio é fanático por pesca. Vida marítima, pesca esportiva, coleções de peixes exóticos, quase lhe brotam as guelras quando sai de férias. Esse hobby torna sua vida de trabalho duro menos estressante; sua alegria ao chegar em casa é alimentar e observar os peixes que habitam um enorme tanque que divide a sala de estar em dois. Aquele colosso de vidro, pedrinha e barco pirata naufragado abriga uma miríade colorida de cidadãos muito diferentes entre si que se respeitam mutuamente e não há conflitos. É fascinante. Tudo é provido por meu tio e todos eles vivem em paz.

Dia desses me interpelam com um tapa-pergunta na cara: “E pra você, o que é política!?”.  Não soube responder. Estava levemente embriagado e muito feliz, duas coisas que impedem um ser humano de refletir sobre assuntos que não lhe dizem respeito. Mas será que não diz? Queria poder dizer que não, que isso é assunto pra 1968 e seus universitários com alguma ideia mais firme na cabeça. Queria poder dizer que política é que nem futebol e religião, ipsis litteris de meu tio em conversa durante jantar de família – acomodado, olhando para os seus peixes ali do lado e fazendo a digestão. Os peixes me dão então uma ideia.

Não seria o aquário a forma perfeita de sociedade?

A vida é pacata; a comida, farta, ritmada, homogênea. Suas fezes flutuam à volta e o asseio é alheio a você. Diabos, sua memória dura três minutos e seu cérebro é do tamanho de um grão de arroz inchado. Todo mundo é diferente, ninguém come ninguém, não há predatismo nem sexo. Uma mão enorme é Deus, existe claramente e aparece duas vezes ao dia, coberta de luz, para prover. Só falta a televisão ali, em frente ao sofá. Isso é política.

O que eu quis dizer com essa minha tentativa de polêmica, de ironia? Isso também é política.

Outro dia desses um grande amigo meu, muito feliz e levemente embriagado, se disse orgulhoso de ser cria de um anarquista. Essa lembrança me veio meio difusa, diluída nos outros pensamentos, mas eu sei que fará algum sentido daqui a pouco. Espera... Depois eu retomo.

O que eu quis dizer com essa minha tentativa de polêmica, de ironia, é política. O ato de fazer política per se para mim é defender seu ponto de vista, e isso só resulta em polêmica ou ironia. Ou você se abala, se ofende pela proposta, ou a desmerece e a subestima. É um jogo de cabo de guerra que de acordo com os princípios da física é um grande desperdício de energia cinética. O aquário é perfeito porque não gera conflito e não se desperdiça energia, portanto.

Agora sim! Voltando ao meu nobre amigo anarquista, ele me confidencia saber ser o anarquismo uma proposta política natimorta. E o que é mais fascinante, isso não o impede de sempre a defendê-la com unhas e dentes. É o contrário de nosso aquário: a vida é conflituosa e o prazer é esse, ensaiar levantes, levar pancada, bater a poeira e gritar novamente. Idealismo puro e honesto, estúpido e fascinante. Quem afinal estaria com a razão?

A verdade – esta pantera – é companheira inseparável do sensato prepotente e do tolo idealista, comumente confundíveis. Política, meu caro, é, portanto, que nem religião e futebol. Vamos deixar pra depois da cerveja.

Esse deve ser o seu ciúme

Estou apaixonado por você quase tanto quanto eu sou apaixonado pelas minhas tardes na Urca.

Cercania

O pombo era o mal necessário daquela cidade,
As amêndoas também.
Os mendigos, o lixo, o asfalto.
Aquele tapete que o passante pisa.
Sem chão não há passante.
Uns poucos flutuam, o resto se arrasta,
O certo é que ninguém se importa,
Mas todos precisam dele
Para seguir para os lados.

Toca pro lado, nas sarjetas paralelas
E os quarteirões quadrados caretas
Não deixam ver a curva do mundo
Que não é redondo.
A esfera é perfeição geométrica
E nosso chão é indigno e imperfeito.
Tem praia, tem montanha,
Mas isso tudo é loteado.
Pra vencer essa organização artificial
Só mesmo o mal,
O mau,
O pombo, o mendigo, o asfalto esburacado.

A fórmula para acordar aquela cidade
Era o cerco do lixo.

Perceptive

A lembrança começou com aquela flor no sapato, presa ali entre os cadarços sujos de caminhar depois da chuva. Estava despedaçada, seus restos depositados despreocupadamente sobre o chão de frio anormal. Assim como a flor. Eu recolhi o que consegui enxergar carinhosamente, botando com cuidado os restos sobre meu caderno em uma débil tentativa de recompô-la. Ela era linda, cheia de cores, apesar do estado deplorável de conservação. Assim como a lembrança.

As pétalas, as cenas, ambas estavam fora de foco. Minha ansiedade foi subindo pela garganta, e só parou quando botei os óculos novamente em frente aos olhos. Eu os havia tirado para descansar os pensamentos. Outra vez com as janelas abertas, minha alma então jorrou as cenas represadas.

Não importa a musa, mas o poeminha que escrevia seguia assim:

"Uma mulher é como um livro novo, um violino em staccato, uma sombra em praia deserta.

Um livro é como um arpegio em um piano, o Centro na quarta-feira, um segundo olhar feminino.

Um contrabaixo é como um bar silencioso, uma ninfomaníaca, uma redondilha em cavalgada.

Uma mesa posta na calçada é como uma mulher espalhafatosa (uma prostituta?), um poeminha de Bandeira, um violão chorando"

A lembrança se perdeu!, seguida da morena flor. A pequena era frágil e não aguentou a sorte que lhe veio junto com o vento e aquele amigo trazendo conversa pela porta.

Dois pontos

Todaessaproximidadecausadesconforto,

Mas          a          distância          é          insustentável.



Sou difícil de agradar.

Ver-te

Há quem ouça o que alego?
Me enxergo como um cego,
Mas eu nem quero mais me ver.
Ser eu mesmo é não mais ser!

E se tantos ouvem, eu prego
Que me nego. A vocês nego
Condição para me conter.
Ser sozinho é mais não ser!

Pois sempre tive tantos egos
Pra vestir, que tive apego
Por alguns em que pude crer.

Nenhum deles mais eu carrego,
Para trás eu ando e chego
A sentir perto, longe ser.

Aforismo

Amor honesto é tatuagem.

Aspirações Frias

Cinco graus de puro frio francês cortando o casaco de grife, desses que não esquenta, apenas ostenta. Eu, esperando na fila de embarque para voltar ao Rio, estava me agarrando ao maldito casaco na esperança de espremer um pouco de compaixão dos fios de lã. Com o Charles de Gaulle deserto, minha única distração era tentar imaginar o porquê de tantos lugares pelo mundo receberem esses nomes de milicos famosos. É, o tempo não estava passando. Nesse meio tempo, o casal do meu lado se abraçava firmemente; abraçavam juras que chegaram a me comover por um segundo. Enquanto minha vez não chegava, passei a bolar ataques terroristas à Ponte Rio - Niterói e acabar de vez com essa palhaçada de Costa e Silva todo feriado. Será que ninguém ligava mais pra isso? O casal insistia, chorava , fazia um pequeno drama dantesco naquela fila imóvel. Nem notaram quando atrás deles uma menina, nos seus 13 ou 14 anos de pura inocência, puxou um celular do bolso e começou a filmá-los.

- Meu amor, eu te amo tanto... Promete que vai me ligar quando se lembrar de mim?

- Claro, meu docinho, vou te ligar toda hora! Não vou parar de te ligar...

A pequena cineasta aspirante captava indiscreta o clima meloso. Dava voltas no casal, procurando ângulos de beijo hollywoodiano. Achei fascinante o interesse da menina em cena tão romântica. Indiferentes àquilo, as outras pessoas na fila olhavam seus relógios como se os ponteiros fossem movidos pela força do pensamento. Eu já havia desistido de imitá-las e estava mais interessado era na cena que ia se compondo na minha frente. A menina se esforçava para manter a câmera firme enquanto o casal destilava frases que pareciam ter sido retiradas de algum filme recente que tivesse “amor” no título. Querendo saciar minha curiosidade, cheguei-me perto da menina e fui puxando conversa.

- Eles estão realmente inspirados, esses dois. E aí, menina, como está indo a filmagem?

- Ah, tio, é pra um curta-metragem. Pra escola.

Tio!? Vá para o inferno.

- Legal. É sobre o que? Amor, lugares românticos?

- Não. É sobre como as pessoas ficam idiotas quando estão apaixonadas.

A fila começou a andar. Voltei devagar para perto das minhas malas e esfreguei as mãos para espantar um pouco o frio. Prometi a mim mesmo duas coisas: começar a fumar quando voltar pra França e botar na cabeceira do berço da minha futura criança alguns Neruda, só por precaução.

Expresso com cachaça

Hoje e sempre, ontem.

Hoje, e sempre ontem.

Hoje é sempre ontem.

Hoje o mundo parou um pouco para mim. Talvez não por mim, mas eu parei ele bem no meio do seu dia. Ele não deve nem ter notado, as pessoas que passavam com gravata ou câmera também não. Elas só queriam trabalhar, turistar, andar. Elas corriam no espaço para vencer o tempo que as instigava. O tempo delas não parou. Sequer piscaram para não perder tempo.

E assim elas continuaram negando. Não perder e não parar são dogmas tão inflamados e incutidos na cabeça dos passantes! Eles perdem por não parar. Há talvez (sempre talvez, a ciência é a mais incerta das religiões) uma relação entre espaço e tempo que se resume, em palavras toscas, a um eixo cartesiano de referência. As quatro dimensões (três espaciais, uma temporal) que medem esse eixo partem de um ponto comum e buscam confortar nossa compreensão humana nos fazendo um cafuné, sorrindo e falando com uma voz afável: "calma, é tudo relativo; só há um porém: ninguém enxergará o mundo no mesmo ritmo que o seu". Estar posicionado em um lugar específico não poderia ser menos específico para a compreensão espacial humana; o tempo de cada um é particular.

Entretanto, hoje eu experimentei a sensação de estar em uma fotografia na qual as pessoas em volta se mexiam, mas só eu vivia. Veja bem, eu não me movimentava. Elas não paravam. Ainda assim, a singularidade do instante se fez presente no ritmo frenético nas minhas veias e na apatia da correria alheia. Pensei, e pensei muito. Falei pouco, pois tive a sorte de dividir esse momento com uma pessoa. Ela pode não ter percebido, mas o tempo dela também parou o nosso mundo. A insanidade dessa freada brusca é muito pessoal, difícil de se materializar fora da mente de quem a vive. Se meu egocentrismo humano não for falso, e eu tiver nascido para contribuir com os meus pares, eu quero que minha herança seja o estímulo para um exercício fundamental para a paz e o engrandecimento do espírito: se habitue a parar e pensar. Dentro de si questione o porquê do que acontece ao seu redor, ou simplesmente admire a beleza da harmonia de quem anda ao seu lado. Aquele chão, aquela menina ou aquela música estão ali para ser pensados. Um ser pensado tem valor, um ser pensante valoriza.

Ah, e o expresso com cachaça? Beba um pequeno gole da cachaça envelhecida, deixe-a formigar na boca e engula. Logo depois, beba um gole do expresso bem quente, com pouco açúcar. A sensação é lenta, como se o seu mundo parasse, e fica melhor ainda se for dividida com alguém.

Até dez minutos

Sempre que ganha voz, o homem
Costuma consumir o homem.
Tantos pares que se consomem
Pra emergir da multidão!

Pois tudo que eles produzem,
Todos eles que se produzem
Com tamanho ímpeto jovem,
É pra ganhar a multidão!

Queremos tanto o talento...
Ainda que eles o provem,
Afundam, fugazes que são.

E é montando o momento
Forjando a voz, que o jovem
Ganha a fugaz emersão.

Reflexão sobre o caminho da ideia

Não há ser pensante e autoconsciente sem um par.

Linguagem é ferramenta entre pares, e só entre pares. Percepção de significância é outra instância, talvez mais universal.

A percepção de significância seria a interpretação similar de um gesto, som ou imagem por dois receptores que não dividem a mesma constituição biológica e bagagem audiovisual/cultural. Dois seres diferentes. A interpretação se daria em processos de comando ou indicação, não permitindo o diálogo direto; ela funciona, como exemplo simplista e claro, na relação de domesticação de animais.

A linguagem, em nível concreto, é baseada no dualismo. Uma ideia só é compreendida qquando sua contraparte é conhecida. Conhecer, no caso, se dá por meio da experiência sensorial, sem capacidade de abstração de valores quantitativos ou qualitativos, apenas a medição por si só.

Em seu nível abstrato, a linguagem perde os parâmetros gerais de comparação. Os valores assumem aspectos de universalidade e imparidade. As contraposições abstratas são, na verdade, nuances de um mesmo conceito. Nossas capacidades sensoriais não agem em nível abstrato, salvo em interpretações errôneas. Transcender a sensação corresponde a aspirar à universalidade.

Talvez seja impossível a um humano compreender plenamente a universalidade. Talvez sejamos indignos. Talvez ela não exista.

Desconfessado

Um grande problema na sua beleza é a agressividade. Veja bem, não estou a falar de sua postura; seu corpo respeita qualquer percepção de perfeição. Sua atitude, aparentemente contida ou simplesmente reservada, também não consegue chegar nem perto de um comportamento alterado. Chega a ser engraçado imaginar algo assim, talvez seria parecido com um filhote de tigre aspirando ser tão terrível quanto sua contraparte adulta.

Então o que me intimida em sua beleza? Mais do que isso, é necessário dizer, ela me causa pavor. As presas expostas, o olhar ferino à espera... Beleza predadora. Sim, é essa sensação de ser caçado que me arrepia e me contrai todos os músculos do corpo - e me estimula. Minha predadora involuntária é agressiva sem nem ao menos esboçar esforço, fazendo minha adrenalina subir com um suspiro apenas. Ela me faz estar sempre em estado de alerta, apreensivo, ansioso. Na verdade, é uma perseguição cansativa; a presa em constante busca por sua cruel caçadora, cena irreal e honesta...

Tudo isso é uma grande besteira. Sou eu tentando canalizar minha frustração e minha covardia em uma imagem que não representa nada. Talvez hoje eu me levante e fale; amanhã eu posso ainda estar reunindo coragem. A única gota de honestidade nesta confissão é o meu pavor.

Contos de almoço

Como era bom o cheiro exalado pelo feijão, feito carinhosamente pela avó! Aquele odor era uma experiência multifacetada, sinestésica, que levava às narinas figuras deliciantes e toques macios representados pelo sabor e o som do feijão. Chegava até a causar uma leve confusão na cabeça fresca e faminta do infante, que brincava distraído na sala da casa com seus blocos de montar. Ele passava a imaginar cenas inteiras baseadas somente naquele cheiro, e como ele era bom! Banquetes medievais a luz de velas e com bardos tocando seus alaúdes, bobos tendo seus ossos quebrados e a corte fazendo o que uma corte fazia... Ou quem sabe, depois de assistir a tantos desenhos na manhã, fosse uma mesa de jantar colonial, em um sítio folclórico no interior do Rio de Janeiro, com uma figura matriarcal, roupas caipiras e muitos animais ao redor da casa. Animais e monstros, o que inevitavelmente incidia em uma refeição nipônica. Alheia aos répteis atômicos e aos alienígenas invasores, a família se serve, em suas cumbucas lindamente pintadas, de algas cruas, peixes crus, vegetais crus e litros de saquê para catalisar a digestão. Tantas cenas passando por sua cabeça deixavam o garoto ainda mais faminto ao se sentar à mesa, e o sinal de ataque dado pela avó o liberava para uma luta injusta e calmamente travada contra o prato de feijão preto. Seu cheiro se espalhava por todo o quintal da casa. As árvores pareciam poder sintetizá-lo e converter em energia para si o que antes era material de construção para mundos imaginários. O menino acabava sempre por dar um cochilo após o almoço; sonhava com dinossauros e cavaleiros.

Fé na corda bamba

Os dedos na ponta de cada pé
Permitem que meu passo saia reto
Equilibrando-me no corpo ereto
Mas os dedos não me resguardam da frustração
E o que empurra o corpo (não fisicamente, mas do lado de dentro)
Ignora aqueles dedos, fazendo-me curvar, perco o centro.

A minha ventura é falha,
Mas brindemos a ela para encorajar:
Boa fortuna à minha ventura,
Que a cura da sorte é andar.

De autoria conjunta de Arthur Rivelo e Rafael Spínola.

Um poema

Ele começa com um amigo
E uma manhã cinzenta de domingo
Na janela, nada mais que um pingo
Quando um fantasma cruzou comigo

Escuto a orquestra do frio
Eu fumo, eu faço fumaça
Eu sou o fantasma em mim
Da morte, matriz; morreu-me a massa

O tempo passa?
O tempo é frio, mas me assa
Me cozinha,
Me enlaça

E enquanto o nada me abraça
Simplesmente esqueço os meios
Absorto em uma visão branca
Me esqueço, me perco, me fluo

Mas que desgraça!
Nunca na vida senti tanto frio
O vidro, meus suspiros embaça
E eu torcendo pra não acabar no vazio

E quando finalmente faço sentido
Sol, céu e mar se invertem
Acabando com o meu abrigo
E no meu mundo se metem

Gelado trio
Amo, da tortura, o frio!
Forte tempo, com força eu torço
Para que, em um tempo largo
Quando eu for mais moço
Seja desse roto rebanho o mago
Que agite do gado o osso
Sol, céu e mar: magros como o tempo
Mar, céu e sol na ponte sobre um rio
Caudaloso com seu vento frio
Gelado trio
Amo, da tortura, o frio!

De autoria conjunta de Arthur Rivelo, Fernanda Prestes, Fernanda Novaes, Gabriel Menezes, Júlia Kastrup, Leonardo Fiuza e Rafael Spínola.

As rugas do Universo

Ele já estava tendo essa conversa há horas, entretanto seu interlocutor insistia em não retrucar. Fica difícil ouvir uma resposta quando se está falando com o Universo. O garoto não se importava, na realidade; embora sua realidade tivesse sido distorcida havia dias. Dias talvez, talvez anos. Ele iria no futuro pensar na tal conversa e rir, contando para seus filhos como era ser jovem anos atrás. E quando as crianças, pelo menos duas, forem para a cama sonhando com dinossauros coloridos e histórias de gente adulta, o garoto não será mais garoto. A lágrima pertinente que irá escorrer amanhã, como escorre agora, leva a conta-gotas sua juventude. O tempo passa para ele, mas não para seu interlocutor. O Universo desconhecia as belezas do envelhecimento porque sua existência era condição para que se contassem as horas, e não o contrário. Como explicar para ele que em um certo momento, o momento certo brilhou para um homem?

O Universo então respondeu com o seu silêncio. Ao menos o garoto interpretou assim, e ficou satisfeito por não estar falando sozinho. Esse mesmo menino continou com seu argumento:

- Livre do tempo a gente não sonha, não sente saudade nem ama; a gente se apega porque sabe que vai perder. E quem pensaria que a liberdade, princípio primeiro da consciência humana, poderia representar algum perigo? Pois eu quero envelhecer, e quero envelhecer lembrando que vivi amando e perdendo. Melhor do que existir e suplantar a afeição pelo que fenece. Definhar, por um lado, é um processo capaz de motivar o maior esforço de superação. E eu digo que qualquer estória deve ter sua incerteza localizada em seu meio, e não em seu fim. Qualquer estória, qualquer vida, ou talvez até mesmo os dias e os anos mereçam a dádiva da dúvida.

Uma lágrima outra caiu nessa hora, mas não fora do garoto. Começara a chover.

- Viu como você é capaz de entender? Como deve ser triste não saber o valor de uma ruga. Mais que uma ruga, uma pergunta ou uma lembrança. As rugas são apenas consequências... Nosso rosto fica contraído pelo esforço de rememorar os questionamentos da juventude. As rugas são apenas consequências...

Porém o garoto ainda não conseguira falar abertamente do ponto em que queria chegar. Tinha vergonha, medo de se sentir tolo na frente de tamanha autoridade. O Universo seria para ele um Deus, um irmão e um juiz. Todos escrutinavam suas ações, e provar para eles suas intenções era das mais difíceis iniciativas de sua vida. No fundo, essa conversa era apenas isso, uma conversa? Não, não poderia ser. Se não fosse sério, ele não teria o Universo, em sua trindade, diante de si. Portanto lhe faltava coragem ou certeza, e ambas compartilhavam um inimigo comum: o medo.

- Medo? Que assim seja, não temo ele. Eu lhe venço na ironia, se quiser me enfrentar! Sim, sinto o medo como qualquer um que já pensou três vezes antes de falar. Quero deixar claro que não gostaria que ele fosse embora. Gosto da sensação de estômago embrulhado quando alguém que importa está se afastando, isso é coerente. Gosto da sensação nas mãos, quando elas tremem, antes de me expor. Gosto da vergonha antes do primeiro beijo. E gosto de dizer adeus.

Foi uma vitória fácil, pois ele era um inimigo antigo e previsível. Todo o temor que assolava os dedos do garoto parou de agitá-los. Ele repousou os dedos diante do rosto, entrelaçados, depois deitou sua testa sobre os punhos. Sem notar, ficou em uma posição de oração. Era a hora certa...

- Sua maior qualidade é o infinito, mas já provei que isso não é importante. Agora que tenho você ao meu nível, vou mostrar como é insignificante aquilo que lhe comove e lhe segura no chão. Abdiquei de minha juventude, de minha segurança e de minha certeza. Isso porque queria ser abraçado por um momento. Esse momento por um instante realmente me abraçou! Todas as formas de energia que movem sua (ou nossa) matéria convergiram um pouco para mim. Egoísmo? Sim, pode parecer que é; ainda assim o faria de novo, e de novo... Porque sentir afeto é a maior recompensa que um mortal pode ter. É sua maior maldição também, mas quem liga? Agora você já sabe porque roubei de você essas horas: pra lhe dizer que amei!

Então era isso?

O garoto tinha certeza, mas o Universo entrou em crise. Por que dedicou tanta atenção a um simples garoto tolo? Havia mais dimensões naqueles poucos metros que os separavam do que o menino seria sequer capaz de entender! Fora um truque, só podia ser, mas... Foi nesse momento que o grande ser percebeu: acabara de convergir para o garoto, tomara forma e presenciara a agonia feliz pela qual ele passava. Como fora ingênuo! O Universo havia entrado no jogo, capturado pelo menino. Agora pretendia sentir raiva. Não aconteceu, não foi capaz, e o grande ser começou a se preocupar com o que se passava.

O garoto deu um sorriso, chorando mais um pouquinho, e executou o Universo com um tiro de misericórdia na boca do estômago: deixara-o com medo. A partir desse momento eles se mantiveram abraçados constantemente, sem saber. Tinham medo da verdade.