Chegaste algures

a partir de onde se está
se se parte cedo, pega o sol ainda a
leste e talvez um vento
alísio

viajar me faz necessário ao homem inerte
e A Estrada, uma infinita
cobra que come sua própria cauda
é combustível que queima na
medida correta em que cresce

oroboro preta listrada
que guia
e queima,
afoga
de calor e um pouco de frio
na solidão do automóvel que Ela digere
viajar tem mesmo um quê de digestivo
no intestino da cobra

23 de agosto, página solta de um diário

as marés funcionam assim: meio-dia vazia, seis da tarde cheia, meia-noite vazia, seis da manhã cheia. agora, os pescadores - como eles funcionam? sei que eles zarpam na madrugada. sei também que voltam com o sol recém-raiado, portanto devem acompanhar o vazar da companheira maré para regressar na cheia. é provável que a traiçoeira maré, caso percam o seu passo nessa dança, se torne vilã. não deve haver lealdade ou devoção do pescador pelo mar - apenas respeito e muita astúcia.

Ah, o sexo

A essas pessoas irritantes que fazem do sexo brincadeira, mas levam o amor a sério: a vida não permite erros, ela clama por eles. Ame alguém errado. O sexo - ah, o sexo - esse, guarde para quando não for mais possível guardá-lo, seja por meses ou apenas alguns olhares.

Testando o freio da bicicleta

hora de testar o freio da bicicleta
descendo ladeira íngrime da espera
antes que eu perca o controle
e rale o joelho no muro
que eu vou rimar com futuro

e ela responderá, retornará
vai mandar uma mensagem, dizer
o que pensa por palavras tão
codificadas pela tortura da espera
que eu não irei rimar

Dada e o carro

a reação da estrangeira neurótica
ao ver a escultura nazista no mam
foi um topless revoltado
que desmaiou a dona do Poodle
que, ao ver sua dona desabar
não sabia se a lambia ou pulava
em busca dos seios da estrangeira
neurótica.

Chegaram os jornalistas e o curador tomou no cu. Tanto se noticiou, que não se fala mais nisso

***

E no entanto, e no entanto foi mesmo numa tarde em que Clara e eu bebericávamos gin numa ladeira em Santa Teresa que seu cadilac chegou buzinando:

- Ora, quem vem lá?

- É você, que está por chegar!

- Clara, clarinha, quem é esse homem que fala com carros?

- Darling, não só carros, mas todos os objetos inanimados. Se soubesse o que fez Catherine quando o viu discutindo o excesso israelita na suástica...


De A. e L.

Vou deixar passar

um passado
que outrora
já fora

À menina por quem me apaixonei aos dezessete anos incompletos

Fica o registro indelével para os anos por vir.

Alguns metros de mergulho depois do salto que é amar aquela mulher

alguns metros de mergulho
vão te fazer enxergar o fundo
mas tu não poderás tocá-lo
tu és eu

o sal vai te arder os olhos
e fazer lágrima no meio do mar
vai parecer impossível quando
os corais te lacerarem a pele
mas deixa estar

o sal já não importa, não arde
o corte já não sangra
e tu não me respiras mais
a pressão estoura os tímpanos
agora nem o som
e a maré vai subindo devagar


o mar te afoga
como minhas mãos em volta da tua garganta delicada
de pele branca, macia
mas roxa da pressão dos dedos

tu sou eu
tu tens que ser eu
me respira

---

Já afogado, me atinei que quem controla a maré é a lua.


Sobre ouvir e contar estórias

Era um trabalhador de cubículo que resolveu procurar estórias. Assim, como se a vontade lhe brotasse no peito e esticasse as folhas para o sol, só que mais rápido que as plantas - essas sobem preguiçosas. Os colegas das baias ao redor lentamente começaram a perceber o comportamento estranho daquele homem. Ele perguntava sobre suas gravatas, seus cortes de cabelo e queria saber detalhe por detalhe do caminho para o trabalho que seus colegas faziam. Diariamente, mesmo que fosse a mesma gravata no peito do mesmo careca que tivesse pego o mesmo ônibus lotado, a pergunta vinha. Alguns estranhavam e passaram a evitar a máquina de café perto daquela baia, outros lá iam só para conferir se já haviam contado a viagem matinal ou mesmo para aumentar alguma ordinária peripécia que tivessem vontade de tornar interessante. Até o uso dos elevadores do prédio se tornou um passeio para aqueles que passaram a enxergar a tentativa de se espremer entre oito obesos uma aventura. Um 'bom dia' gerava agora um desenrolar de trocas e espantos e alívios e mentirinhas e glórias...

O trabalhador do cubículo era o catalisador da agora frequente comoção de colegas, que resolveram preparar uma fogueira naquela sala de reunião desocupada e sentar pelo chão. Primeiro eram alguns, depois tantos até que enfim muitos. Suas gravatas eram extravagantes ou engraçadas, mas nunca ordinárias, assim como seus trajetos. O trabalhador os perguntava e eles faziam questão de enfatizar seus atalhos e experiências em frente ao fogo, entretendo aqueles sentados ao redor. As baias vazias do escritório acumulavam agora objetos trazidos de casa: fotos, livros, bolas, comidas, violões. As xícaras e os teclados havia muito se perderam sob os retratos e as pinturas.

O gerente da filial resolveu conferir pessoalmente a causa de tantos e-mails não respondidos. Ele explorou cada baia vazia por aquelas bandas, e era tanta quinquilharia cobrindo as mesas que o homem achou se tratar de alguma mudança imprevista de escritório. Esbarrou enfim em outro homem de terno e o interpelou. Recebeu um olhar indiferente e a resposta seca "aqueles vagabundos". Aqueles vagabundos. Se seus subordinados haviam se amotinado, era dever dele corrigir o descaso e fazer aquele escritório voltar a ter brio e respeito! O gerente convocou os poucos homens que ainda se encontravam na região das baias e os reuniu para entender o que se passava. Descobriu um punhado de detalhes e resolveu conferir.

A sala de reunião já era pouca para o trânsito de pessoas e suas estórias. Na hora do almoço, era insuportável de tão cheia. Passados uns dias, eles conseguiram organizar um sistema de refeições alternadas com jogos, danças e a tradicional reunião na fogueira. Desligaram o sistema de incêndio da área e distribuíram vasos de plantas pelos corredores e por entre as baias daquele canto do escritório. Alguns nem lembravam mais como chegar nas suas próprias baias, outros faziam hora extra para estudar as estrelas com aquele homem que agora era chamado de Auscultador. Muitos do grupo trouxeram suas famílias, trouxeram também alguns tecidos e desmontaram as paredes de dry-wall que faziam fronteira com as salas de reunião vizinhas. Agora havia espaço para dormir e o entorno da fogueira se estabeleceu como um espaço comum para os convivas.

Quando o gerente da filial entrou pela porta principal e, distraído, quase cozinhou ao tropeçar sobre a lenha em brasa, ninguém estranhou sua presença. Quem reparou na sua chegada veio lhe trazer colares e adornos de elástico e post-it. Ele os recebeu sem entender o que acontecia e tossiu violentamente quando lhe chegou a fumaça do cachimbo fumado pelos homens debruçados nas janelas. Nem ao menos sabia que aquelas janelas podiam ser abertas. Junto com a fumaça veio um pouco de brisa e ele de imediato sentiu calor por estar de terno e gravata. Tirou o paletó, o esqueceu em algum canto e foi achar o líder daquele motim silvícola, embora ninguém parecesse liderar nada naquele lugar. Por fim reparou em um homem rodeado por mais mulheres e homens com trajes inadequados; usavam panos e não camisas. Entrou no meio da roda e calou com um chiado os que falavam mais animados.

O rebu foi incontrolável. Quase todos no grupo já haviam se esquecido do passado nas baias insossas, e quanto mais aquele homem que se dizia gerente tentava impor sua autoridade, mais todos falavam, se irritavam, riam ou resmungavam na volta aos seus afazeres. Após um grito - um tanto resignado - de "estão todos despedidos!", o gerente da filial exigiu falar com o líder deles. O homem que era chamado de Auscultador deu alguns passos à frente. O grupo, agora por todo desinteressado, se dispersou e deixou os dois sozinhos.

Ninguém ouviu o que foi dito. Via-se um homem de gravata esbravejar, desabafar e enfim conversar com o outro, que estava calmo dentro de seus panos coloridos. O Auscultador ouvia com paciência. Depois de um longo tempo, no qual o gerente descoloriu toda a vermelhidão da raiva, ele foi levado até a fogueira para se sentar, deitar suas estórias e deixar um pouco de lado a conta dos dias.

Depois de alguns anos fiscais perdera-se já toda a memória das baias antigas. Sentado com os outros na fogueira da sala de reunião, o Gerente passava o tempo a ouvir atento às estórias do grupo que dominou o andar do prédio. O que aprendera com as palavras do Auscultador, ele transmitia para as crianças e debatia com as anciãs e os anciões responsáveis pela memória aposentada do grupo. O próprio Auscultador havia decidido partir e tomar o elevador para outros andares e conhecer novas estórias. Entre os cultivos de fumo e a estocagem dos víveres, se deitaram as últimas paredes e fundou-se uma recepção no átrio por onde o Auscultador partiu. Os poços que o levaram traziam de tempos em tempos outras mulheres e homens que adotavam os panos, os cachimbos e os instrumentos daquela empresa que enfim lucrava tempo.

O quarto verso

A falta que o fato faz
A coça quando o couro come
O morro onde o mato morre
O quarto verso
Onde esse poema termina.

A gentileza sem rótulo

Existe esse fogo queimando dentro
Que me faz

Sentar sempre ao lado das damas
                       mais belas dos recintos

Abrir portas para elas,
               dar passagem

Dar boa noite
        ou a vez

        E querer lhes fazer
        O mais lânguido sexo
        Mordendo os bicos dos seios
        Para esquecer que são damas

Sobre viver entre o mar e a cordilheira

I

Os últimos suspiros 
De alguma aldeia qualquer

De antes de concretarem do mar à cordilheira

São essas traineiras
Mais velhas que a cidade


II

Eu blindado
Por aço, vidro, borracha
Aço e plástico
Mais aço
E um volante

Eu blindado
Não contra balas
Mas contra o lado de fora
Que chove ou late
Ou mendiga

É quando acordo que sinto mais vontade de botar meu velho uniforme e brincar no pátio depois do lanche II

Te amo, você não sabe o quanto
Mas eu sei!

É tipo do tamanho
Dessa mão até
Essa outra mão
Só que tão esticadas, mas tão esticadas que
Se eu batê-las
Sairei voando

É quando acordo que sinto mais vontade de botar meu velho uniforme e brincar no pátio depois do lanche

Vamos brincar de ausência?
Conte até cem, de olhos fechados
Olhe pros lados
E não encontre ninguém

Um dia passa

Dia passa, dia vai
O negrume se refestela de almas
Usando pesadelo de talher
E tem quem reza pra lua o pai

Dia passa, dia vai
O cansaço pesa sobre os ombros
Sob os lençóis, entre as têmporas
E se perde no sono que trai

Dia passa, dia vai
As dores amplificadas pelo frio
Confunde-nos o osso por vidro
Que se estilhaça e o homem cai

Dia passa, dia vai
Com todo pesadelo, todo
Cansaço, toda dor
É na noite que a vida
Me acorda pra vida em flor
Na teimosia que é burlar,
Masoquista, um torpor
Se me submeto vítima
É para então ser senhor
Que acorda com pontada
Fisgando
E vê
Despertado
Agressão que passa
Tristeza que vai

Frutífera

Me sinto bem, apenas

Me sento além
Sinto ao extremo

E com os pés soltos na borda
Transborda o amor
E com os pés molhados na margem
Espero a marola chegar

É que esses calafrios da umidade
Faz lembrar o cheiro de cerejas
Afogadas de chuva
E de amores distraídos

Me perco nas gotas sobre esse lago

De autoria conjunta de Ingrid Gomes e Arthur Rivelo