Alegoria da minha paz

Primeiro foi a tevê. A sala ali, estática, agindo como se não se importasse. E lá foi o aparelho, seguido pelo rádio e seus arrojados alto-falantes  Carlos estava sentado no sofá, e agora não havia mais sofá. Ele olhou a cena distante, logo ali do seu lado, mesmo assim distante, e perdeu sua noção de espaço junto com a mesa de centro, que levou com ela os controles e a decoração de cactos artificiais. As paredes entraram na contradança, e de repente Carlos viu que tudo ao seu redor estava em um baile estranho. Concentrou-se um pouco e observou o horizonte, vendo o asfalto e as árvores serem suspensos no ar. Cada prédio, cada pedestre estava sumindo no ar. Logo não havia mais ar.

Depois foram as certezas. Saíram em disparada de sua cabeça aquelas ideias que acostumaram Carlos a ficar acostumado a elas. Perderam-se na fuga o preconceito, o racismo, a fé e a moral. Estavam entre essas ideias mais outras, muitas outras, mas se perderam. Os rostos dos conhecidos e as figuras que lhe disseram ser necessário conhecer; tantas pessoas enchiam sua memória e em meio a um caos controlado elas simplesmente saíram. Levaram consigo toda arte, guardaram nos bolsos o que acharam de ciência. A filosofia, rabugenta embora sociável, ficou. Não sobrou mais nada, cada gota ou grão de lembrança debandou de Carlos e o deixou sem saber ao menos quem era ou se alguém era.

Embalado por uma certa agonia, Carlos tentou em vão ficar cônscio daquilo que se passava, mas não havia mais consciência - ele estava reduzido a si.

E seu pensamento.

Primeiro veio o pensamento. Não partira de verdade, apenas estava mais vívido agora. Livre de tudo o que fosse, solto do mundo, Carlos era. Ele era algo em construção. Cada peça que antes compunha Carlos estava ausente, mas ainda assim ele era algo.

Carlos era. Justificando-se por uma lógica irrefutável, compreendeu ser seu saber fruto e prova de sua existência antes de qualquer outro pressuposto. Era necessário um ente para que houvesse o saber.

Carlos era um. Apenas uma voz se pronunciava em sua mente. Podia ser confortável tentar apoiar sua lucidez em outras existências, mas sua individualidade lhe garantia tanto a liberdade de ser quanto a responsabilidade de sê-lo.

Carlos era um homem. Um punhado de impulsos elétricos percorrendo a massa anamórfica de células. Uma mente. Um ponto sem espaço nem tempo, um vácuo no qual residia seu eu. Ele então compreendeu sua humanidade - ser alguém em lugar ou instante algum, e ainda assim se fazer presente no seu devido local e momento.

Depois veio a calma. Toda a energia morna acumulada naquele momento de ignorância, espanto e reconhecimento explodiu em uma serenidade reluzente. O calor percorreu átomo por átomo dos seus membros e descansou na ponta de seus dedos. Carlos foi tomado por uma sensação perene e isso o deixou feliz. Sequer havia resolvido qualquer que fosse a questão, mas sorria ao perceber-se capaz de questionar. Talvez a vida se tratasse disso. Carlos não mais se importava, não se importava com resoluções ou propostas, compreendendo ser seu rumo apenas o caminho.