Azul

bem aventurado, aquele que acorda defronte a ti depois da noite meio dormida  há o calor, decerto há um calor por entre e ao redor dos corpos que causa radiação no quarto e irá durar as horas do dia, mas há por cima o azul do sol peneirado pela cortina mal fechada na pressa anterior ao sexo  a cortina tem essa fresta vertical recente, mas não se pode ignorar a grande faixa de horizonte aparente descolada do chão, consequência de um pequeno erro de cálculo na hora de furar as buchas na parede e suspender a armação  o lençol, as roupas por todos os lados possíveis, os celulares e carteiras e relógios cartesianamente dispostos sobre o único móvel do quarto quase vazio representando uma nesga da nossa personalidade metódica  todo esse quadro se repete quando acordo, com sorte  olho para o lustre e me ofusco apenas para fechar as pálpebras e enxergar uma mancha que sempre está lá  essa mancha é azul e em absoluto não tem cor  azul é a cor da tua saia num mafuá de tecido ao pé do colchão; você, por hábito, tão bem vestida, quase me faz desistir de desenlaçar os panos que te cobrem, por não querer desalinhar a figura  não sei desenhar linhas retas, afinal meus círculos, quando muito, são elipses - entretanto o azul se recusa a ficar torto  se tentasse te desenhar, pintaria fora das linhas com o giz de ponta grossa e o pó do rabisco iria ao chão se juntar aos sapatos  esse pó não será varrido nesta manhã quente, mas o azul


dos teus olhos me restam a mancha que sempre está lá e em absoluto não tem cor

Uma mulher come uma maçã

Parte 1

a boca sorri e é até bonita   ela me cheira eu só a conheço o resto não faço ideia do que seja   eu só a conheço   pode-se dizer que estou apaixonada   vermelha como eu como um espelho eu como o sol para ficar forte e crescer quem sabe me tornar adulta ter filhos   não quero morrer   por que pensei nisto?   a boca me sorri e eu levito   ela me dá banho com massagem firme sobre minha pele vermelha ah eu fico tão envergonhada não quero que ninguém veja o meu sexo minha pele   agora tá frio e eu perdi o sol que repousava sobre a minha cama minhas irmãs continuam deitadas elas são mais novas eu queria vê-las ficar forte e crescer quem sabe se tornar adultas   não quero morrer   não tá mais frio estou enrolada em papel toalha será que volto a ver o sol? já sinto fome   cadê a boca? não quero morrer   ah o sol   a boca sorri e fala sem dúvida ela é linda está mais vermelha que antes quase brilhando nesse sol estou completamente apaixonada   a boca fala fala para de falar e eu levito   argh por que fez isso eu te amava tanto podíamos ser   argh pare   por favor   argh eu nunca te   ahh



Parte 2

cesta: hey
mulher: bom dia
maçãs: bom dia
mulher: quero você
maçã: eu não entendo nada do que você fala mas o que eu mais quero neste mundo é estar com você para sempre   o que é você?
mulher: só uma   melhor te lavar
maçã: você cuida tão bem de mim eu sou saudável demais está vendo  acho que vou sentir saudade da minha família quando eu partir com você seja lá o que você for
mulher: tchau
cesta: tchau



Parte 3

A natureza persegue mesmo um ciclo incessante de equilíbrio através do embaralhamento das moléculas que compõem seu sistema hermético incapaz de perder apenas responsável por criar. E como é possível criar tanto, tanto, sem nunca perder? É uma grande esfera de raios não equidistantes não propriamente uma esfera, por assim dizer, cuja matemática os homens tentam adestrar e o zero continua um mistério.

Quais são as propriedades do zero?

Uma mulher come uma maçã.


O zero é mais indivisível que o átomo.