Sobre ouvir e contar estórias

Era um trabalhador de cubículo que resolveu procurar estórias. Assim, como se a vontade lhe brotasse no peito e esticasse as folhas para o sol, só que mais rápido que as plantas - essas sobem preguiçosas. Os colegas das baias ao redor lentamente começaram a perceber o comportamento estranho daquele homem. Ele perguntava sobre suas gravatas, seus cortes de cabelo e queria saber detalhe por detalhe do caminho para o trabalho que seus colegas faziam. Diariamente, mesmo que fosse a mesma gravata no peito do mesmo careca que tivesse pego o mesmo ônibus lotado, a pergunta vinha. Alguns estranhavam e passaram a evitar a máquina de café perto daquela baia, outros lá iam só para conferir se já haviam contado a viagem matinal ou mesmo para aumentar alguma ordinária peripécia que tivessem vontade de tornar interessante. Até o uso dos elevadores do prédio se tornou um passeio para aqueles que passaram a enxergar a tentativa de se espremer entre oito obesos uma aventura. Um 'bom dia' gerava agora um desenrolar de trocas e espantos e alívios e mentirinhas e glórias...

O trabalhador do cubículo era o catalisador da agora frequente comoção de colegas, que resolveram preparar uma fogueira naquela sala de reunião desocupada e sentar pelo chão. Primeiro eram alguns, depois tantos até que enfim muitos. Suas gravatas eram extravagantes ou engraçadas, mas nunca ordinárias, assim como seus trajetos. O trabalhador os perguntava e eles faziam questão de enfatizar seus atalhos e experiências em frente ao fogo, entretendo aqueles sentados ao redor. As baias vazias do escritório acumulavam agora objetos trazidos de casa: fotos, livros, bolas, comidas, violões. As xícaras e os teclados havia muito se perderam sob os retratos e as pinturas.

O gerente da filial resolveu conferir pessoalmente a causa de tantos e-mails não respondidos. Ele explorou cada baia vazia por aquelas bandas, e era tanta quinquilharia cobrindo as mesas que o homem achou se tratar de alguma mudança imprevista de escritório. Esbarrou enfim em outro homem de terno e o interpelou. Recebeu um olhar indiferente e a resposta seca "aqueles vagabundos". Aqueles vagabundos. Se seus subordinados haviam se amotinado, era dever dele corrigir o descaso e fazer aquele escritório voltar a ter brio e respeito! O gerente convocou os poucos homens que ainda se encontravam na região das baias e os reuniu para entender o que se passava. Descobriu um punhado de detalhes e resolveu conferir.

A sala de reunião já era pouca para o trânsito de pessoas e suas estórias. Na hora do almoço, era insuportável de tão cheia. Passados uns dias, eles conseguiram organizar um sistema de refeições alternadas com jogos, danças e a tradicional reunião na fogueira. Desligaram o sistema de incêndio da área e distribuíram vasos de plantas pelos corredores e por entre as baias daquele canto do escritório. Alguns nem lembravam mais como chegar nas suas próprias baias, outros faziam hora extra para estudar as estrelas com aquele homem que agora era chamado de Auscultador. Muitos do grupo trouxeram suas famílias, trouxeram também alguns tecidos e desmontaram as paredes de dry-wall que faziam fronteira com as salas de reunião vizinhas. Agora havia espaço para dormir e o entorno da fogueira se estabeleceu como um espaço comum para os convivas.

Quando o gerente da filial entrou pela porta principal e, distraído, quase cozinhou ao tropeçar sobre a lenha em brasa, ninguém estranhou sua presença. Quem reparou na sua chegada veio lhe trazer colares e adornos de elástico e post-it. Ele os recebeu sem entender o que acontecia e tossiu violentamente quando lhe chegou a fumaça do cachimbo fumado pelos homens debruçados nas janelas. Nem ao menos sabia que aquelas janelas podiam ser abertas. Junto com a fumaça veio um pouco de brisa e ele de imediato sentiu calor por estar de terno e gravata. Tirou o paletó, o esqueceu em algum canto e foi achar o líder daquele motim silvícola, embora ninguém parecesse liderar nada naquele lugar. Por fim reparou em um homem rodeado por mais mulheres e homens com trajes inadequados; usavam panos e não camisas. Entrou no meio da roda e calou com um chiado os que falavam mais animados.

O rebu foi incontrolável. Quase todos no grupo já haviam se esquecido do passado nas baias insossas, e quanto mais aquele homem que se dizia gerente tentava impor sua autoridade, mais todos falavam, se irritavam, riam ou resmungavam na volta aos seus afazeres. Após um grito - um tanto resignado - de "estão todos despedidos!", o gerente da filial exigiu falar com o líder deles. O homem que era chamado de Auscultador deu alguns passos à frente. O grupo, agora por todo desinteressado, se dispersou e deixou os dois sozinhos.

Ninguém ouviu o que foi dito. Via-se um homem de gravata esbravejar, desabafar e enfim conversar com o outro, que estava calmo dentro de seus panos coloridos. O Auscultador ouvia com paciência. Depois de um longo tempo, no qual o gerente descoloriu toda a vermelhidão da raiva, ele foi levado até a fogueira para se sentar, deitar suas estórias e deixar um pouco de lado a conta dos dias.

Depois de alguns anos fiscais perdera-se já toda a memória das baias antigas. Sentado com os outros na fogueira da sala de reunião, o Gerente passava o tempo a ouvir atento às estórias do grupo que dominou o andar do prédio. O que aprendera com as palavras do Auscultador, ele transmitia para as crianças e debatia com as anciãs e os anciões responsáveis pela memória aposentada do grupo. O próprio Auscultador havia decidido partir e tomar o elevador para outros andares e conhecer novas estórias. Entre os cultivos de fumo e a estocagem dos víveres, se deitaram as últimas paredes e fundou-se uma recepção no átrio por onde o Auscultador partiu. Os poços que o levaram traziam de tempos em tempos outras mulheres e homens que adotavam os panos, os cachimbos e os instrumentos daquela empresa que enfim lucrava tempo.

Um comentário:

Surpreenda-me.