Daquele tempo sobra o fim e nada menos

Um parque na orla do Centro, que dava vista para o aeroporto e tinha uns bancos de pracinha incongruentes com os carros que passavam perto dali, pisando oitenta e tossindo buzina. O ar estava pastoso da neblina porque era cedo e o sol não prometia vingar, mas quem vingava em final de julho? A segunda banda de maçã do ano amadureceria com efeito para eles só dali a uns dias. A mãe desfrutava de uns dias mais tranquilos no escritório e levava seu pequeno ainda em férias para conhecer seu trabalho e a pracinha dos aviões. Caminhavam perto da murada ao largo do passeio público, passando por uns desocupados que alentavam ao som das turbinas misturado com o chiado de marola. A mulher gostava de visitar esse lugar, último chão dos seus pés na terra natal antes de migrar durante alguns aniversários para um país frio de pessoas frias e cerveja quente; quer então sempre viver de novo, reviver, sobreviver aqueles últimos verões de moça. Seu olhar perdido na baía contradizia o foco de seu filho, tão espantado com os passarinhos de metal carregando luz e gente e mala e tudo pra longe dele e dali. O olhar dela se perdia no chiado das marolas.

E foi passando que ela passou por um permanente homem na murada. Ele parecia um portentoso guarda do mar, com seus óculos escuros e o cigarro que acendia um isqueiro bem característico. O fogo chamou a atenção da mulher, que o reconheceu de pronto. Fogo verde. Esse aparato incomum, só quem o possuía era um velho conhecido. Hesitou, rememorou e tomou iniciativa de abordá-lo, com o filho firme na mão. Perdeu o compasso da respiração faltando três passos. O homem tinha o rosto virado serenamente para as marolas, mas parecia que as observava mais com os ouvidos. Gostava de inclinar a cabeça de vez em quando, de forma a apurar a audição, e a mulher achou graça desse movimento quase involuntário.

- Vem, Dante, vamos sentar aqui no murinho. Quer ficar olhando os aviões?

- Lá, mãe, posando!

- É mesmo, vamos contar quantos pousam.

O homem aspirou o cigarro e virou o rosto para aquele pouco de família ao seu lado.

- Lívia?

Tamanha era a justiça daquela expressão, que ela se conformou e apenas fez que sim com a cabeça. Ele era pura frieza, ou melhor, distância. O homem ao seu lado emanava distância na careta vazia que fazia ao encarar incerto a mulher, até que germinou um sorrisinho complacente no canto dos dentes. Ela se rendeu:

- Oi.

- É, oi - ele ri por quase um segundo - Bom te encontrar, Lívia. Bom mesmo...

- É...

- Irônico, mas bom.

- Pois é, mas que coincidência, né? Também é bom te ver, Dante.

O garotinho se virou para responder o chamado da mãe. Ela afagou o cocuruto do pequeno e se voltou para o homem, que, a dois palmos, parecia estar encarando um infinito depois da esquina. Os pulmões dele expulsaram fumaça bem no meio da neblina.

- Que foi, mamãe?

- Nada, filho. o nome do tio é igualzinho ao seu, viu? Vocês dois têm o nome mais lindo da terra.

- Mas eu nunca vi esse tio.

- Olha os modos, Dante! Isso é falta de educação.

- Deixa ele, Lívia! Ele tem razão, não é, rapaz? É bom ser sincero mesmo. Então vou te contar uma coisa: é que eu já fui namorado da sua mamãe, faz um tempão.

A mulher ficou corada, mas foi incapaz de repreender a ousadia honesta do homem que falava ao seu filho. Para ela, todo aquele passado que acontecia antes de sua viagem permanece lá, bem guardado, na esperança de ser eventualmente esquecido. Na cabeça repassava agora todas as justificativas que se impusera para seguir na sua diáspora. Houve o medo... Houve mesmo tantas coisas, planos, algumas promessas, as decepções. Não pudera esquecer os olhos verdes de Dante, é claro, nem do prazer dele ao tocar sua pele branca como cocaína. Seu corpo viciara o dele e acabara por fazer tanto mal, que só mesmo diluído em prazer. Quando ele a olhava, era para olhar no fundo da alma e fazer a culpa e o desejo formigarem nas pernas deitadas. Aquelas quatro pernas se entrecruzavam e...

- Escuta, Dante, deixa meu filho fora disso. Filho, já foram quantos aviões?

- Foi quatro gaviões, mãe. Tem mais um ali, olha!

Ela não entendia por quê ele escondia os olhos por trás dos óculos escuros. Nunca fora seu estilo. O ruído de uma turbina de avião desequilibrou seu olhar e ela se pegou fitando direto nas lentes escuras. O pudor lhe virou o rosto e ela não viu quando o homem se voltou para o mar e desabafou um suspiro quieto, depois tragou. Ele continuou a embalar o azul baiano até que ela pegou de leve na sua mão.

- Que droga. Desculpa.

- Ah, não agora, Lívia.

- Quando?

Outra tragada.

- Se ainda fosse ontem...

- Já foi, não dá.

- É, já foi. Não precisa tentar.

- Poupe-me das suas filosofias. Não quero tentar, assim como não quis.

- Está aí uma grande verdade - as narinas sopravam devagar, atrasando o tempo para pensar - Sabe, ontem eu te amava. De quem é o menino?

- Não é nosso, óbvio, ele só tem três anos... Alguém deu a luz, é adotado, eu só dei carinho. E o nome.

- Justo.

- Você sempre dizia isso.

O garoto apontou para uma barca que cruzava a baía e chamou sua mãe. Ela rapidamente voltou a atenção para ele e se fez esquecer. O céu leitoso tirava toda a graça de viajar naquele barquinho, explicou a mãe, pois então eles iriam outro dia. Ela penteou a franja do pequeno e se calou.

O homem fez menção de se levantar. A mulher levou novamente suas digitais para perto das dele, mas conseguiu retrair o toque. Não se achava no direito de atrapalhar a paz em que ambos reinavam até alguns aviões atrás, nem queria lembrar que fora em um deles que ela foi embora para nunca mais. O nunca primeiro ainda durou pouco, depois durou muito, e até ontem mesmo esse nunca era definitivo. O homem se virou devagar e se içou sem muito equilíbrio. Ela ainda não entendia o porquê daquele olhar que, se antes era fogo verde, agora era maresia escondida. Decidiu perguntar.

Ela fez menção de falar, mas o homem abriu uma bengala retrátil e tateou alguns passos incertos. O barulho dos toques do apoio se perdeu no ruído chiado pelas marolas. A criança perguntou enquanto Dante virava já no infinito depois da esquina:

- Mãe, chama aquele tio pra voar de gavião com a gente?

Um comentário:

Surpreenda-me.