Vi a vida; ela ria
Da gestão de um novo feto -
Humano, fraco e quieto -
E do destino da cria.
Perguntei-a se havia
Graça em nossa mazela,
Pois a vida ria dela.
Dela mesma ela ria!
"A dádiva e a mazela
São a mesma" disse ela,
"É certo, morre e procria
Para completar seu elo!"
Com um sorriso amarelo
Também ri da ironia.
Alvorada e infância
Sinal fechado. Esquina iluminada, um oásis gélido naquele deserto em breu. Ela caminha a passos lentos na sarjeta, e a sarjeta responde com sons de batidas ocas a cada golpe dos saltos altos e extravagantes. Eles são dourados. Suas alças cobrem uma meia-calça escura, que sobe até se fundir com a saia curta e preta. Casaco felpudo e preto, camisa curta e preta, apenas aqueles saltos brilham na penumbra afastada da luz do poste. E o sorriso de repente se abre, brilha junto dos saltos, em reposta à oportunidade: o carro parado no sinal não anda quando a luz verde acende.
Quebrando o silêncio, o vidro escuro do carro desce para revelar um homem jovem que oferece calor em seu sorriso. Ele parece polidamente convidá-la com os olhos. A mulher, alheia à sutileza do flerte, anda até a janela aberta e se oferece. Aparece um certo desgosto nos olhos do jovem, mas as palavras que surpreendem o sorriso agora quebrantado são ainda mais quentes e firmes:
- Me fale o seu nome.
Ela se surpreende com o pedido, julgando desnecessária tal intimidade assim, tão direta. Pondera sobre ser seguro dizer seu nome verdadeiro, mas na falta de argumentos, ela se deixa levar pelo conforto na voz dele.
- Clara, querido, ao seu dispor - o garoto não responde, se limitando a olhar demoradamente o rosto dela. O silêncio dura alguns segundos desconfortáveis, até que a mulher o espanta com certa impaciência - Então, vai querer levar, mocinho?
Ele aparenta ser alguns anos mais novo que ela. Sua juventude, apesar disso, transparece uma austeridade incomum. Rosto sério, modos educados e um calor que emana do sorriso. Abrindo por dentro a porta do carona, com um convite sem palavras ele recebe de bom grado a companhia vistosa no assento vizinho. A mulher se ajeita sobre o banco e ri quando ele oferece ajuda, achando engraçado todo aquele galanteio. Ele sorri para ela mais uma vez e acelera o carro para dentro da noite.
Amplas ilhas de luz fraca são fornecidas pelos postes que rasgam a paisagem, permitindo um conhecimento parco entre os dois. Ele fixa sua atenção ora nas mãos brancas, ora no perfil da estranha, as únicas partes expostas de seu corpo naquela noite fria. Ela demora seu olhar sobre o jovem quando ele não a encara. Como aqueles olhos são penetrantes, pensa. Ela prefere observar discretamente. Nota poucas peculiaridades nele, além de uma beleza oprimida por ares de solidão, até chegarem em um prédio residencial no centro da cidade.
O carro é parado em uma vaga e o rapaz se apressa em abrir a porta para a mulher, que agradece com um sorriso e se levanta roçando seu corpo no dele. Os pelos arrepiados no braço o deixam embaraçado, e ela aproveita para provocá-lo ainda mais correndo a mão sobre seu peito. O jovem, a despeito de qualquer nervosismo, afasta os cabelos dela com seus dedos em um gesto de afeto. Agora os rostos estão perto, e ele galga centímetros lentamente. O primeiro beijo atrasa o tempo e arrasta um silêncio de deleite enquanto suas mãos a prendem delicadamente perto de si, e ela pensa novamente o quanto aqueles olhos são penetrantes mesmo quando estão fechados. A mulher, sentindo os músculos dele contraídos, apoia o rosto na bochecha do rapaz e sussurra em seu ouvido:
- Agora eu entendi, garoto. Você é virgem... Mas a gente resolve isso, sou uma boa professora.
- Não, não é isso.
- Não precisa mentir para mim. - ela abaixa mais ainda a voz e cola os lábios no ouvido dele. - Vamos fazer o seguinte: essa é por minha conta, mas só porque eu te achei uma gracinha, garoto. - e voltando ao tom normal - Vamos logo, estou ficando ansiosa.
Ele a guia até um elevador, afagando seus cabelos durante a curta subida, e a puxa pela mão até uma porta de madeira envernizada e pesada que traz aconchego a um prédio aparentemente moderno e frio. Assim como aqueles olhos, pensa a mulher, sem conseguir afastar da mente a íris que parecia despi-la muito devagar, talvez com um pudor até infantil. Ela se deixa entrar, absorta na visão da sala com um mínimo de móveis confortáveis, e fica surpresa ao perceber o jovem aparecer logo com taças de vinho e um convite sorridente e tímido para se sentar no sofá. A mulher se ajeita sobre almofadas e ri quando ele lhe entrega uma taça. Agora ela não mais consegue fazer seus jogos vulgares, sendo conquistada pelo ambiente caseiro que apenas tem sua intimidade aumentada quando o rapaz se senta ao seu lado e volta a afagar seus cabelos. Sem poder reagir, nem que realmente o quisesse, ela deita sua cabeça sobre o ombro dele e fecha os olhos por longos minutos.
Longos e sublimes.
Agora tudo corre naturalmente, os beijos mostram aos lábios o caminho até pescoços e ombros. Com os pelos na nuca eriçados e os olhos ainda fechados, ela o visualiza à sua frente tirando seu casaco e blusa. Ela agora tem medo de abrir os olhos, abri-los poderia fazer toda aquela cena desaparecer da sua mente. Um desejo ardente de tatuar aquele momento na sua vida toma conta de sua lucidez; lucidez essa que se esvai quando ele termina de despi-la e a esquenta com seu próprio corpo agora também nu. Amor. Ela não pensa em mais nada. E sabe que ele seria incapaz de fazer-lhe mal.
Agora a alvorada arde levemente nos olhos dela. O sol ainda está parcialmente escondido, mas os primeiros fachos mornos a acordam suavemente. Sentindo uma felicidade profunda, ela busca se situar, e descobre estar envolvida nos braços do rapaz dentro de um quarto, sobre a cama mais aconchegante em que já se deitara. Havia deitado em muitas. Essa lembrança amarga a traz a um estado de remorso, e ela se culpa por seu passado perante uma criatura tão pura e que fora tão sincera. Culpada pelo destino imposto, pensa, mas que ironia.
- Bom dia, Clara...
A voz rouca é sussurrada em seu ouvido com enorme afetividade. Ainda assim, a culpa cresce. Se dilata por dentro. Ela precisa se desculpar, pedir perdão, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua sensação. Ele nunca entenderia! O que fazer então? Custa a acreditar na resposta que soa baixinho dentro de si, mas afinal se sente decidida, sabendo ser essa a única solução que a deixaria em paz consigo mesma.
Quando abre os olhos, procurando aquela que há alguns minutos estivera sob seus braços, ele a vê vestida e em pé, ao lado da cama. Ela o está observando, parece já estar assim por um bom tempo, e seus olhos estão vermelhos. Parece murmurar um pedido de desculpas antes de desviar seu olhar para o chão. Ele corre para abraça-la ainda nu, preocupado. O silêncio explica a ânsia que se afunda no estômago dela. Nunca antes percebera tamanha magnitude em uma sensação alheia. Quer dizer isso para ela, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua compreensão. A mulher o envolve em seus braços, espantando-lhe o frio que corre pelo quarto. Eles apenas se abraçam em silêncio por longos minutos.
Então ela sai correndo. Deixa-o estarrecido ao lado da cama, em toda a sua nudez, e corre rapidamente até a varanda. Atravessa o vidro que a prende na sala, há cortes por todo o seu corpo. Os estilhaços voam ao seu redor, voam pela sacada e a acompanham até a queda livre. Finalmente, livre. Mesmo tendo de abdicar daquele que lhe ensinará a sentir...
Desfazendo-se dessas últimas imagens na sua cabeça, ela se levanta.
Da melhor maneira que consegue, ela explica que se sente terrivelmente culpada por seu passado. Se sente suja. Sua vida nunca lhe dera outra chance e ela fez o que tinha de ser feito, mas agora estava arrependida. Cada lembrança contada é acompanhada por uma lágrima sua e um olhar quieto dele. Desabafa as agressões, as perversões e os limites ultrapassados para que pudesse se manter durante anos, sem ser capaz de buscar outra solução. A mulher, reduzida ali diante do jovem, volta a se sentir uma criança que procura outra para acompanhá-la: quer se sentir pura novamente, talvez apenas brincar e depois dormir, acordar mais tarde e ainda ser uma criança. Ele entende e lhe abraça o colo, ainda sentado na lateral da cama. Acolhido por ela, ele entende.
- Não quero nada de você.
De maneira tortuosa, cada um compreende seus desejos. Nenhum som, nenhum barulho naquele quarto agora iluminado amplamente pela alvorada afeta a conversa silenciosa que ocorre entre os olhos penetrantes e a alma infantil. Os amantes brincam e depois dormem. Mais tarde naquele dia, eles irão acordar ansiosos e descobrirão que ainda são crianças.
Quebrando o silêncio, o vidro escuro do carro desce para revelar um homem jovem que oferece calor em seu sorriso. Ele parece polidamente convidá-la com os olhos. A mulher, alheia à sutileza do flerte, anda até a janela aberta e se oferece. Aparece um certo desgosto nos olhos do jovem, mas as palavras que surpreendem o sorriso agora quebrantado são ainda mais quentes e firmes:
- Me fale o seu nome.
Ela se surpreende com o pedido, julgando desnecessária tal intimidade assim, tão direta. Pondera sobre ser seguro dizer seu nome verdadeiro, mas na falta de argumentos, ela se deixa levar pelo conforto na voz dele.
- Clara, querido, ao seu dispor - o garoto não responde, se limitando a olhar demoradamente o rosto dela. O silêncio dura alguns segundos desconfortáveis, até que a mulher o espanta com certa impaciência - Então, vai querer levar, mocinho?
Ele aparenta ser alguns anos mais novo que ela. Sua juventude, apesar disso, transparece uma austeridade incomum. Rosto sério, modos educados e um calor que emana do sorriso. Abrindo por dentro a porta do carona, com um convite sem palavras ele recebe de bom grado a companhia vistosa no assento vizinho. A mulher se ajeita sobre o banco e ri quando ele oferece ajuda, achando engraçado todo aquele galanteio. Ele sorri para ela mais uma vez e acelera o carro para dentro da noite.
Amplas ilhas de luz fraca são fornecidas pelos postes que rasgam a paisagem, permitindo um conhecimento parco entre os dois. Ele fixa sua atenção ora nas mãos brancas, ora no perfil da estranha, as únicas partes expostas de seu corpo naquela noite fria. Ela demora seu olhar sobre o jovem quando ele não a encara. Como aqueles olhos são penetrantes, pensa. Ela prefere observar discretamente. Nota poucas peculiaridades nele, além de uma beleza oprimida por ares de solidão, até chegarem em um prédio residencial no centro da cidade.
O carro é parado em uma vaga e o rapaz se apressa em abrir a porta para a mulher, que agradece com um sorriso e se levanta roçando seu corpo no dele. Os pelos arrepiados no braço o deixam embaraçado, e ela aproveita para provocá-lo ainda mais correndo a mão sobre seu peito. O jovem, a despeito de qualquer nervosismo, afasta os cabelos dela com seus dedos em um gesto de afeto. Agora os rostos estão perto, e ele galga centímetros lentamente. O primeiro beijo atrasa o tempo e arrasta um silêncio de deleite enquanto suas mãos a prendem delicadamente perto de si, e ela pensa novamente o quanto aqueles olhos são penetrantes mesmo quando estão fechados. A mulher, sentindo os músculos dele contraídos, apoia o rosto na bochecha do rapaz e sussurra em seu ouvido:
- Agora eu entendi, garoto. Você é virgem... Mas a gente resolve isso, sou uma boa professora.
- Não, não é isso.
- Não precisa mentir para mim. - ela abaixa mais ainda a voz e cola os lábios no ouvido dele. - Vamos fazer o seguinte: essa é por minha conta, mas só porque eu te achei uma gracinha, garoto. - e voltando ao tom normal - Vamos logo, estou ficando ansiosa.
Ele a guia até um elevador, afagando seus cabelos durante a curta subida, e a puxa pela mão até uma porta de madeira envernizada e pesada que traz aconchego a um prédio aparentemente moderno e frio. Assim como aqueles olhos, pensa a mulher, sem conseguir afastar da mente a íris que parecia despi-la muito devagar, talvez com um pudor até infantil. Ela se deixa entrar, absorta na visão da sala com um mínimo de móveis confortáveis, e fica surpresa ao perceber o jovem aparecer logo com taças de vinho e um convite sorridente e tímido para se sentar no sofá. A mulher se ajeita sobre almofadas e ri quando ele lhe entrega uma taça. Agora ela não mais consegue fazer seus jogos vulgares, sendo conquistada pelo ambiente caseiro que apenas tem sua intimidade aumentada quando o rapaz se senta ao seu lado e volta a afagar seus cabelos. Sem poder reagir, nem que realmente o quisesse, ela deita sua cabeça sobre o ombro dele e fecha os olhos por longos minutos.
Longos e sublimes.
Agora tudo corre naturalmente, os beijos mostram aos lábios o caminho até pescoços e ombros. Com os pelos na nuca eriçados e os olhos ainda fechados, ela o visualiza à sua frente tirando seu casaco e blusa. Ela agora tem medo de abrir os olhos, abri-los poderia fazer toda aquela cena desaparecer da sua mente. Um desejo ardente de tatuar aquele momento na sua vida toma conta de sua lucidez; lucidez essa que se esvai quando ele termina de despi-la e a esquenta com seu próprio corpo agora também nu. Amor. Ela não pensa em mais nada. E sabe que ele seria incapaz de fazer-lhe mal.
Agora a alvorada arde levemente nos olhos dela. O sol ainda está parcialmente escondido, mas os primeiros fachos mornos a acordam suavemente. Sentindo uma felicidade profunda, ela busca se situar, e descobre estar envolvida nos braços do rapaz dentro de um quarto, sobre a cama mais aconchegante em que já se deitara. Havia deitado em muitas. Essa lembrança amarga a traz a um estado de remorso, e ela se culpa por seu passado perante uma criatura tão pura e que fora tão sincera. Culpada pelo destino imposto, pensa, mas que ironia.
- Bom dia, Clara...
A voz rouca é sussurrada em seu ouvido com enorme afetividade. Ainda assim, a culpa cresce. Se dilata por dentro. Ela precisa se desculpar, pedir perdão, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua sensação. Ele nunca entenderia! O que fazer então? Custa a acreditar na resposta que soa baixinho dentro de si, mas afinal se sente decidida, sabendo ser essa a única solução que a deixaria em paz consigo mesma.
Quando abre os olhos, procurando aquela que há alguns minutos estivera sob seus braços, ele a vê vestida e em pé, ao lado da cama. Ela o está observando, parece já estar assim por um bom tempo, e seus olhos estão vermelhos. Parece murmurar um pedido de desculpas antes de desviar seu olhar para o chão. Ele corre para abraça-la ainda nu, preocupado. O silêncio explica a ânsia que se afunda no estômago dela. Nunca antes percebera tamanha magnitude em uma sensação alheia. Quer dizer isso para ela, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua compreensão. A mulher o envolve em seus braços, espantando-lhe o frio que corre pelo quarto. Eles apenas se abraçam em silêncio por longos minutos.
Então ela sai correndo. Deixa-o estarrecido ao lado da cama, em toda a sua nudez, e corre rapidamente até a varanda. Atravessa o vidro que a prende na sala, há cortes por todo o seu corpo. Os estilhaços voam ao seu redor, voam pela sacada e a acompanham até a queda livre. Finalmente, livre. Mesmo tendo de abdicar daquele que lhe ensinará a sentir...
Desfazendo-se dessas últimas imagens na sua cabeça, ela se levanta.
Da melhor maneira que consegue, ela explica que se sente terrivelmente culpada por seu passado. Se sente suja. Sua vida nunca lhe dera outra chance e ela fez o que tinha de ser feito, mas agora estava arrependida. Cada lembrança contada é acompanhada por uma lágrima sua e um olhar quieto dele. Desabafa as agressões, as perversões e os limites ultrapassados para que pudesse se manter durante anos, sem ser capaz de buscar outra solução. A mulher, reduzida ali diante do jovem, volta a se sentir uma criança que procura outra para acompanhá-la: quer se sentir pura novamente, talvez apenas brincar e depois dormir, acordar mais tarde e ainda ser uma criança. Ele entende e lhe abraça o colo, ainda sentado na lateral da cama. Acolhido por ela, ele entende.
- Não quero nada de você.
De maneira tortuosa, cada um compreende seus desejos. Nenhum som, nenhum barulho naquele quarto agora iluminado amplamente pela alvorada afeta a conversa silenciosa que ocorre entre os olhos penetrantes e a alma infantil. Os amantes brincam e depois dormem. Mais tarde naquele dia, eles irão acordar ansiosos e descobrirão que ainda são crianças.
Em espera
Bom, infelizmente meu tempo é curto
E nao sei se caracteres em uma tela
Terão paixão ao aparecer pra você.
Você é um tipo de Romeu virtual...
E quero que continue sendo, enquanto essa for nossa realidade possível.
Até a minha tela poder ser seu rosto de novo e a sua o meu...
Dragão Filosófico
E nao sei se caracteres em uma tela
Terão paixão ao aparecer pra você.
Você é um tipo de Romeu virtual...
E quero que continue sendo, enquanto essa for nossa realidade possível.
Até a minha tela poder ser seu rosto de novo e a sua o meu...
Dragão Filosófico
Racional
A umidade nas folhas mostrava o calor que a estava atormentando, perdida em uma clareira entre tantas árvores altas e folhas mortas caídas no chão. Formavam um belo tapete, mas ela não podia afastar do pensamento o fato de que também formavam um túmulo adequado para acolher sua cria. Sabia ser isso parte da vida, pois a natureza não lhe negava nada e nem permitia ter seu desejo negado. Seu filho se estendia ainda morno sobre o forro bucólico; sua boca estava seca de tentar acordá-lo em vão. Após tantas tentativas frustradas, ela desistiu e se deitou ao seu lado. Não estava propriamente inconsolável, mas bem ciente da tristeza que cobria aquela cena.
A cena não poderia ser mais banal: cada criatura capaz de fazer barulho por entre as folhas o fazia, cacofonia inabalável e intermitente. O som entrecortado de pios e arrulhos e guinchos e lamúrios de seres famintos ou libidinosos compunha uma sinfonia de tamanha variação rítmica que seria quase insuportável para ouvidos destreinados. Os próprios ouvidos da mãe, antes abaixados por respeito ao seu filho, saíram de um silêncio interno para se atordoarem com o espantoso volume que se sucedia ao seu redor. Esses mesmos ouvidos a levaram para onde estava agora, quando um estampido violento assustou aves para fora de seus ninhos momentos antes. O tempo ocorrido entre o curto estouro e a corrida até a clareira pareceu uma eternidade, até mesmo para ela, que pouco entendia de tempo. A revoada ainda se agitava no céu no momento em que ela deitou seus olhos no espaço aberto da mata, verde maculado por um filete vermelho que corria entre algumas folhas mortas. O líquido morno dava vida àquela matéria orgânica depositada caprichosamente no solo. O calor ainda atormentava a cabeça dela.
Foi quando uma outra fonte de calor chamou sua atenção para um lado próximo da clareira. Na verdade, havia toda uma trilha quente que ligava o corpo estendido no chão a um filete de fumaça que vinha da mata. A trilha era acompanhada de um forte cheiro amargo, estranho ao ambiente. A mãe não compreendia o que se passava, mas instintivamente entendeu o que viria a seguir. Eriçou suas orelhas e apurou seu faro, mas era tarde demais, sabia que não seria capaz de reagir. Apenas tentou cercar seu filho, protegê-lo do que quer que viesse tentar se aproveitar de seu corpo inerte. Ela se recusaria a partir vendo sua cria sofrer.
O estampido foi de uma rapidez piedosa. O calor e o susto a fizeram se sentir desconfortável a princípio, mas a mãe se esforçou para parecer calma diante dos olhos vazios de seu filho. Deitou-se ao seu lado a tempo de ver uma criatura estranha e alta vir em sua direção através da vegetação. Fechou os olhos e deixou vir a escuridão. Ou a luz.
---+*+----+*+---
O homem estava deliciado com o resultado. Como era sortudo! E também inteligente, é claro... Sua astúcia lhe rendera uma ótima caça. Não acreditava como esses animais eram estúpidos. Bastou acertar o filhote e vejam só, ponto a favor do mais evoluído... Após esbravejar suas comemorações para a mata a atirar uma vez mais de forma a afastar aquelas malditas aves barulhentas, recolheu seu prêmio e voltou para casa pensando na melhor maneira de contar seu feito para os amigos.
A cena não poderia ser mais banal: cada criatura capaz de fazer barulho por entre as folhas o fazia, cacofonia inabalável e intermitente. O som entrecortado de pios e arrulhos e guinchos e lamúrios de seres famintos ou libidinosos compunha uma sinfonia de tamanha variação rítmica que seria quase insuportável para ouvidos destreinados. Os próprios ouvidos da mãe, antes abaixados por respeito ao seu filho, saíram de um silêncio interno para se atordoarem com o espantoso volume que se sucedia ao seu redor. Esses mesmos ouvidos a levaram para onde estava agora, quando um estampido violento assustou aves para fora de seus ninhos momentos antes. O tempo ocorrido entre o curto estouro e a corrida até a clareira pareceu uma eternidade, até mesmo para ela, que pouco entendia de tempo. A revoada ainda se agitava no céu no momento em que ela deitou seus olhos no espaço aberto da mata, verde maculado por um filete vermelho que corria entre algumas folhas mortas. O líquido morno dava vida àquela matéria orgânica depositada caprichosamente no solo. O calor ainda atormentava a cabeça dela.
Foi quando uma outra fonte de calor chamou sua atenção para um lado próximo da clareira. Na verdade, havia toda uma trilha quente que ligava o corpo estendido no chão a um filete de fumaça que vinha da mata. A trilha era acompanhada de um forte cheiro amargo, estranho ao ambiente. A mãe não compreendia o que se passava, mas instintivamente entendeu o que viria a seguir. Eriçou suas orelhas e apurou seu faro, mas era tarde demais, sabia que não seria capaz de reagir. Apenas tentou cercar seu filho, protegê-lo do que quer que viesse tentar se aproveitar de seu corpo inerte. Ela se recusaria a partir vendo sua cria sofrer.
O estampido foi de uma rapidez piedosa. O calor e o susto a fizeram se sentir desconfortável a princípio, mas a mãe se esforçou para parecer calma diante dos olhos vazios de seu filho. Deitou-se ao seu lado a tempo de ver uma criatura estranha e alta vir em sua direção através da vegetação. Fechou os olhos e deixou vir a escuridão. Ou a luz.
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O homem estava deliciado com o resultado. Como era sortudo! E também inteligente, é claro... Sua astúcia lhe rendera uma ótima caça. Não acreditava como esses animais eram estúpidos. Bastou acertar o filhote e vejam só, ponto a favor do mais evoluído... Após esbravejar suas comemorações para a mata a atirar uma vez mais de forma a afastar aquelas malditas aves barulhentas, recolheu seu prêmio e voltou para casa pensando na melhor maneira de contar seu feito para os amigos.
Alegoria da minha paz
Primeiro foi a tevê. A sala ali, estática, agindo como se não se importasse. E lá foi o aparelho, seguido pelo rádio e seus arrojados alto-falantes Carlos estava sentado no sofá, e agora não havia mais sofá. Ele olhou a cena distante, logo ali do seu lado, mesmo assim distante, e perdeu sua noção de espaço junto com a mesa de centro, que levou com ela os controles e a decoração de cactos artificiais. As paredes entraram na contradança, e de repente Carlos viu que tudo ao seu redor estava em um baile estranho. Concentrou-se um pouco e observou o horizonte, vendo o asfalto e as árvores serem suspensos no ar. Cada prédio, cada pedestre estava sumindo no ar. Logo não havia mais ar.
Depois foram as certezas. Saíram em disparada de sua cabeça aquelas ideias que acostumaram Carlos a ficar acostumado a elas. Perderam-se na fuga o preconceito, o racismo, a fé e a moral. Estavam entre essas ideias mais outras, muitas outras, mas se perderam. Os rostos dos conhecidos e as figuras que lhe disseram ser necessário conhecer; tantas pessoas enchiam sua memória e em meio a um caos controlado elas simplesmente saíram. Levaram consigo toda arte, guardaram nos bolsos o que acharam de ciência. A filosofia, rabugenta embora sociável, ficou. Não sobrou mais nada, cada gota ou grão de lembrança debandou de Carlos e o deixou sem saber ao menos quem era ou se alguém era.
Embalado por uma certa agonia, Carlos tentou em vão ficar cônscio daquilo que se passava, mas não havia mais consciência - ele estava reduzido a si.
E seu pensamento.
Primeiro veio o pensamento. Não partira de verdade, apenas estava mais vívido agora. Livre de tudo o que fosse, solto do mundo, Carlos era. Ele era algo em construção. Cada peça que antes compunha Carlos estava ausente, mas ainda assim ele era algo.
Carlos era. Justificando-se por uma lógica irrefutável, compreendeu ser seu saber fruto e prova de sua existência antes de qualquer outro pressuposto. Era necessário um ente para que houvesse o saber.
Carlos era um. Apenas uma voz se pronunciava em sua mente. Podia ser confortável tentar apoiar sua lucidez em outras existências, mas sua individualidade lhe garantia tanto a liberdade de ser quanto a responsabilidade de sê-lo.
Carlos era um homem. Um punhado de impulsos elétricos percorrendo a massa anamórfica de células. Uma mente. Um ponto sem espaço nem tempo, um vácuo no qual residia seu eu. Ele então compreendeu sua humanidade - ser alguém em lugar ou instante algum, e ainda assim se fazer presente no seu devido local e momento.
Depois veio a calma. Toda a energia morna acumulada naquele momento de ignorância, espanto e reconhecimento explodiu em uma serenidade reluzente. O calor percorreu átomo por átomo dos seus membros e descansou na ponta de seus dedos. Carlos foi tomado por uma sensação perene e isso o deixou feliz. Sequer havia resolvido qualquer que fosse a questão, mas sorria ao perceber-se capaz de questionar. Talvez a vida se tratasse disso. Carlos não mais se importava, não se importava com resoluções ou propostas, compreendendo ser seu rumo apenas o caminho.
Depois foram as certezas. Saíram em disparada de sua cabeça aquelas ideias que acostumaram Carlos a ficar acostumado a elas. Perderam-se na fuga o preconceito, o racismo, a fé e a moral. Estavam entre essas ideias mais outras, muitas outras, mas se perderam. Os rostos dos conhecidos e as figuras que lhe disseram ser necessário conhecer; tantas pessoas enchiam sua memória e em meio a um caos controlado elas simplesmente saíram. Levaram consigo toda arte, guardaram nos bolsos o que acharam de ciência. A filosofia, rabugenta embora sociável, ficou. Não sobrou mais nada, cada gota ou grão de lembrança debandou de Carlos e o deixou sem saber ao menos quem era ou se alguém era.
Embalado por uma certa agonia, Carlos tentou em vão ficar cônscio daquilo que se passava, mas não havia mais consciência - ele estava reduzido a si.
E seu pensamento.
Primeiro veio o pensamento. Não partira de verdade, apenas estava mais vívido agora. Livre de tudo o que fosse, solto do mundo, Carlos era. Ele era algo em construção. Cada peça que antes compunha Carlos estava ausente, mas ainda assim ele era algo.
Carlos era. Justificando-se por uma lógica irrefutável, compreendeu ser seu saber fruto e prova de sua existência antes de qualquer outro pressuposto. Era necessário um ente para que houvesse o saber.
Carlos era um. Apenas uma voz se pronunciava em sua mente. Podia ser confortável tentar apoiar sua lucidez em outras existências, mas sua individualidade lhe garantia tanto a liberdade de ser quanto a responsabilidade de sê-lo.
Carlos era um homem. Um punhado de impulsos elétricos percorrendo a massa anamórfica de células. Uma mente. Um ponto sem espaço nem tempo, um vácuo no qual residia seu eu. Ele então compreendeu sua humanidade - ser alguém em lugar ou instante algum, e ainda assim se fazer presente no seu devido local e momento.
Depois veio a calma. Toda a energia morna acumulada naquele momento de ignorância, espanto e reconhecimento explodiu em uma serenidade reluzente. O calor percorreu átomo por átomo dos seus membros e descansou na ponta de seus dedos. Carlos foi tomado por uma sensação perene e isso o deixou feliz. Sequer havia resolvido qualquer que fosse a questão, mas sorria ao perceber-se capaz de questionar. Talvez a vida se tratasse disso. Carlos não mais se importava, não se importava com resoluções ou propostas, compreendendo ser seu rumo apenas o caminho.
Sobre uma certa viagem
12:06
As obrigações para com o mundo colocavam um Rapaz neste exato lugar, nesta exata hora.O banco do ônibus era o último lugar no universo que ele gostaria de estar agora. A coletividade tornava-o incapaz, a mercê de quem viesse e se servisse do espaço em anexo. Achava realmente desconfortável estar assim tão próximo de algum possível contato aberto com a humanidade, em toda a sua amplitude, mas até agora o cosmos conspirou a seu favor: o território conquistado ainda se encontrava imaculado.
12:17
Seu constrangimento era evidente; fones de ouvido, mochila no colo e um olhar fugidio eram suas muralhas. Até agora ninguém havia ousado quebrar o silêncio imposto, nenhuma senhora sedenta por frivolidades ou trabalhor disposto a resolver as desigualdades do mundo com conversas politizadas. Tudo corria bem, dentro do possível. E dentro daquele ônibus saculejante.
12:21
A porta traseira abre, pessoas são empurradas e um profeta de coletivos assume posição de combate diante da catraca - ele era a perfeita figura de um algoz. A paz até então reinante ruiu.
12:24
Palavras desconexas, relatos de uma vida sofrida (e recorrente entre esses profetas; eles podiam até ter retórica, mas nem um pouco de imaginação), panfleto com mensagens genéricas e um pedido por trocados, em troca de paz de espírito e Jesus. O Rapaz engatilhou sua melhor expressão estóica e lutou como pôde. Queria apenas que aquela provação acaba-se. Talvez até passar uma lição para o torturador profeta: "Você acha mesmo que Jesus foi o semideus templário e ariano que você fica caricaturando? Pare de assistir televisão e vá ler um livro...".
12:25
Quando achava que toda a emoção da viagem havia terminado, o Rapaz de repente sente seus olhos atraídos de volta à catraca. Não esperava encontrar logo ali alguém que despertasse seus sentidos assim tão abruptamente. Conseguiu se manter aparentemente calmo, mesmo ficando arrepiado. Uma mulher que o deixasse assim, arrepiado, era algo raro. Era uma beleza rara, dessas que não se encontra em um ônibus. O Rapaz ficou sem ação.
12:25:47
Ela finalmente segue pelo corredor, buscando um lugar. Ele tenta, sem confiança, fixar seus olhos nas correspondentes esmeraldas da mulher. Naquele instante reconhece o valor de uma pedra preciosa: a sua raridade. Entende porque homens mataram e escravizaram por causa de um mineral tolo. Eles sabiam que essa simples pedra escondia uma mulher como aquela dentro de si! Agora era a mulher quem possuía a pedra em si, mas não a escondia. Exibia-a com orgulho e naturalidade.
12:25:55
Cada pelo do corpo do Rapaz tenta se lançar ao ar, buscando o infinito longe deste exato lugar, desta exata hora. Querem escapar do que temem acontecer quando a mulher finalmente se sentar ao lado dele. Ela está tão próxima!
12:26:55'15
Passa em sua cabeça, em sequência, cada figura feminina que registrara em sua vida. Nunca houve tamanha beleza, nem magnetismo... Se sentia atraído por ela como um imã tolo e poderoso demais para seu próprio bem.
12:26:56'15
Ela se senta. Ele não sabe o que fazer, nem se deve fazer algo, na verdade. Apenas sorri.
12:27:02'00
"Aceita uma bala?"
12:27:04
Ela aceita e sorri de volta.
13:06
Seu ponto passou havia 15 minutos, mas ele não se importava. Cada minuto da conversa valeu a pena, e o número de telefone anotado na sua mão simplesmente o fazia esquecer de todas as outras obrigações para com o mundo - quem se importava? Quem merecia a sua atenção agora era aquela com quem ele esperava descobrir a beleza da humanidade. Enquanto isso, o ônibus segue saculejante por seu caminho cíclico, sem fim. Os profetas de coletivo, os trabalhadores e as senhoras decoram a viagem e todos os possíveis futuros que irão descer dela.
As obrigações para com o mundo colocavam um Rapaz neste exato lugar, nesta exata hora.O banco do ônibus era o último lugar no universo que ele gostaria de estar agora. A coletividade tornava-o incapaz, a mercê de quem viesse e se servisse do espaço em anexo. Achava realmente desconfortável estar assim tão próximo de algum possível contato aberto com a humanidade, em toda a sua amplitude, mas até agora o cosmos conspirou a seu favor: o território conquistado ainda se encontrava imaculado.
12:17
Seu constrangimento era evidente; fones de ouvido, mochila no colo e um olhar fugidio eram suas muralhas. Até agora ninguém havia ousado quebrar o silêncio imposto, nenhuma senhora sedenta por frivolidades ou trabalhor disposto a resolver as desigualdades do mundo com conversas politizadas. Tudo corria bem, dentro do possível. E dentro daquele ônibus saculejante.
12:21
A porta traseira abre, pessoas são empurradas e um profeta de coletivos assume posição de combate diante da catraca - ele era a perfeita figura de um algoz. A paz até então reinante ruiu.
12:24
Palavras desconexas, relatos de uma vida sofrida (e recorrente entre esses profetas; eles podiam até ter retórica, mas nem um pouco de imaginação), panfleto com mensagens genéricas e um pedido por trocados, em troca de paz de espírito e Jesus. O Rapaz engatilhou sua melhor expressão estóica e lutou como pôde. Queria apenas que aquela provação acaba-se. Talvez até passar uma lição para o torturador profeta: "Você acha mesmo que Jesus foi o semideus templário e ariano que você fica caricaturando? Pare de assistir televisão e vá ler um livro...".
12:25
Quando achava que toda a emoção da viagem havia terminado, o Rapaz de repente sente seus olhos atraídos de volta à catraca. Não esperava encontrar logo ali alguém que despertasse seus sentidos assim tão abruptamente. Conseguiu se manter aparentemente calmo, mesmo ficando arrepiado. Uma mulher que o deixasse assim, arrepiado, era algo raro. Era uma beleza rara, dessas que não se encontra em um ônibus. O Rapaz ficou sem ação.
12:25:47
Ela finalmente segue pelo corredor, buscando um lugar. Ele tenta, sem confiança, fixar seus olhos nas correspondentes esmeraldas da mulher. Naquele instante reconhece o valor de uma pedra preciosa: a sua raridade. Entende porque homens mataram e escravizaram por causa de um mineral tolo. Eles sabiam que essa simples pedra escondia uma mulher como aquela dentro de si! Agora era a mulher quem possuía a pedra em si, mas não a escondia. Exibia-a com orgulho e naturalidade.
12:25:55
Cada pelo do corpo do Rapaz tenta se lançar ao ar, buscando o infinito longe deste exato lugar, desta exata hora. Querem escapar do que temem acontecer quando a mulher finalmente se sentar ao lado dele. Ela está tão próxima!
12:26:55'15
Passa em sua cabeça, em sequência, cada figura feminina que registrara em sua vida. Nunca houve tamanha beleza, nem magnetismo... Se sentia atraído por ela como um imã tolo e poderoso demais para seu próprio bem.
12:26:56'15
Ela se senta. Ele não sabe o que fazer, nem se deve fazer algo, na verdade. Apenas sorri.
12:27:02'00
"Aceita uma bala?"
12:27:04
Ela aceita e sorri de volta.
13:06
Seu ponto passou havia 15 minutos, mas ele não se importava. Cada minuto da conversa valeu a pena, e o número de telefone anotado na sua mão simplesmente o fazia esquecer de todas as outras obrigações para com o mundo - quem se importava? Quem merecia a sua atenção agora era aquela com quem ele esperava descobrir a beleza da humanidade. Enquanto isso, o ônibus segue saculejante por seu caminho cíclico, sem fim. Os profetas de coletivo, os trabalhadores e as senhoras decoram a viagem e todos os possíveis futuros que irão descer dela.
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