Esquadria quarta medida

da janela em um outro planeta avisto
a Terra diminuta, projetada
instantes de atraso ao olhar
incauto do momento presente
um homem corta um nabo

o fio do gume desliza por entre a
carne do vegetal e secreta
uma saliva
a língua seca do homem
explora o encontro dos lábios

olho através da janela da cozinha
n'outro planeta há também nabos
e homens
por ora incautos
do presente

a faca termina o corte
o fim do movimento coincide
com o olhar
sobre a mancha escura
defronte a vista

um composto
estéril de metais vindos
da Terra
corta uma vida ao meio inexato
instantes antes

o planeta recebe o tempo projetado
no intervalo em que o homem
busca o nabo
com a ponta dos dedos
a boca seca a língua um segundo

o nabo vai à
mancha negra
esfrega sobre a camisa
acidentada do shoyo
o homem incauto

um átimo para tudo
dois segundos param o olhar
repousa
sobre os restos de jantar, peixe, arroz
e vegetal

só me resta a boca
seca
depois do shoyo
vem a bonança
e uma brisa lá de fora

a Terra valsa no tempo
em que some a mancha
e eu avisto através
da janela da cozinha
um outro planeta


Manual da proporção de afeto

Mede-se o amor na paridade dos defeitos.

Meu sexo inequívoco

Eu tenho tesão é no mar, Francisco.

Cardigan preto sobre a rede de dormir

o café frio que me serve não
estraga o gosto que ficou
do seu cabelo
embora embrulhe um pouco o estômago
no trajeto para casa
eu me perco
em pensamentos de futuro do pretérito
o que seria de quinta
sem o teu bom dia?
chego em casa, tiro a roupa
e me sobe o aroma de suor
de novo
repito os passos até aqui
para lembrar se não sonhava
para lembrar do seu rosto
de mil cheiros e faces
que não enxergo com a miopia, mas
com a palma da mão que toca as curvas
da bochecha rosada de calor e tesão
ou vergonha tola sob o meu corpo
eu desbravo cada polegada desvairada
da epiderme que protege teus órgãos
da pressão do mundo lá fora e
desço a beijar sua flor
meio arisco
meio carinho

Casco sem atrito sobre o asfalto

Estou tomado de uma potência que me faz querer cavalgar o carro pela madrugada sem um rumo que baste. Quero arregimentar ombro a ombro meus infantes contra o moinho - sou o campeão das justas travadas na tundra urbana. Com a lança atravessada nas pás ou no peito do dragão dos ventos, eu cochilo e sonho e acordo entre acordes de Milton. Bastam-me alguns acordes! Quero rebentar as cordas contra a solitude do silêncio, que alegria é fazer melodia e dissonar.

Destilar a felicidade é uma alquimia distante tal qual o ouro curado do plumbum metallicum feio e maleável usado pelo homem para tantos fins que nem o ouro seria capaz de suprir. Por que então vale mais o ouro? A felicidade é essa áurea utopia: de nada vale, senão para iluminar a trilha dos reis magos. Sigo montado no dorso do carro através do breu piscado dos postes, degustando o vento no rosto.

Dominar a liberdade é um masoquismo sensual e inútil que chicoteia o próprio lombo para estimular o ritmo. De que adianta correr sem chegar? A liberdade é um combustível: da natureza não se extrai mais energia do que nela já circula, damos-lhe novos fins e isso tem de bastar. Agarro-me às rédeas dos cavalos mecânicos para me manter em movimento. Eu não posso parar.

Chegar ao fim foi, entretanto, ou será inadiável.

Bula em tercetos

toda vez que for sair de casa
abra a porta como se
rasgasse uma placenta

se abrir uma janela
pule por ela
com os olhos

tanto quanto for possível
ande a pé
e tome a rua errada