Das ultrapassagens em faixa contínua

as veias pulsam carros
com média de
1,32 passageiro
carregam o sangue venoso
repleto das impurezas do corpo
a urbe, um corpo
entidade colossal de asfalto
vergalhão e esse cadinho de calçada
a cidade agride suas células

a construção civil odeia a pequena
escala do cidadão
as alimentadoras secam o gargalo
dos bairros avizinhados
tão distantes
tão perto de sufocar
o sangue arterial a plenos
pulmões, bombeado a contrações
nem tem força pra seguir
toda via expressa às seis

é um corredor polonês

Dia diá

sístolediástole
bomba bomba pela artéria o
ar fresco no compasso da valsa
umdois
bom dia, caros ouvintes
a vida segue normal, apenas
levemente engarrafada na Linha Vermelha
sístolediástole
plaqueta ante plaqueta
ninguém à volta sabe
a ciranda que é se manter vivo, ninguém
tem ciência do binarismo contrátil
essencial para coçar atrás da orelha
sístolediástole
a cabeça pendula o lábio boceja a pálpebra
abre os olhos e vê
aquilo que eu vejo
só eu vejo
sístolediástole
desejo desequilibrado
desse jeito que só
o corpo produz em um dia seu próprio peso em atp
sístolediástole
e no mesmo dia consome esse peso
e no mesmo dia consome seu peso
sístolediáspora
e todas as células do meu corpo migram

Esquadria quarta medida

da janela em um outro planeta avisto
a Terra diminuta, projetada
instantes de atraso ao olhar
incauto do momento presente
um homem corta um nabo

o fio do gume desliza por entre a
carne do vegetal e secreta
uma saliva
a língua seca do homem
explora o encontro dos lábios

olho através da janela da cozinha
n'outro planeta há também nabos
e homens
por ora incautos
do presente

a faca termina o corte
o fim do movimento coincide
com o olhar
sobre a mancha escura
defronte a vista

um composto
estéril de metais vindos
da Terra
corta uma vida ao meio inexato
instantes antes

o planeta recebe o tempo projetado
no intervalo em que o homem
busca o nabo
com a ponta dos dedos
a boca seca a língua um segundo

o nabo vai à
mancha negra
esfrega sobre a camisa
acidentada do shoyo
o homem incauto

um átimo para tudo
dois segundos param o olhar
repousa
sobre os restos de jantar, peixe, arroz
e vegetal

só me resta a boca
seca
depois do shoyo
vem a bonança
e uma brisa lá de fora

a Terra valsa no tempo
em que some a mancha
e eu avisto através
da janela da cozinha
um outro planeta


Manual da proporção de afeto

Mede-se o amor na paridade dos defeitos.

Meu sexo inequívoco

Eu tenho tesão é no mar, Francisco.

Cardigan preto sobre a rede de dormir

o café frio que me serve não
estraga o gosto que ficou
do seu cabelo
embora embrulhe um pouco o estômago
no trajeto para casa
eu me perco
em pensamentos de futuro do pretérito
o que seria de quinta
sem o teu bom dia?
chego em casa, tiro a roupa
e me sobe o aroma de suor
de novo
repito os passos até aqui
para lembrar se não sonhava
para lembrar do seu rosto
de mil cheiros e faces
que não enxergo com a miopia, mas
com a palma da mão que toca as curvas
da bochecha rosada de calor e tesão
ou vergonha tola sob o meu corpo
eu desbravo cada polegada desvairada
da epiderme que protege teus órgãos
da pressão do mundo lá fora e
desço a beijar sua flor
meio arisco
meio carinho