Pássaros, bicos sobem
Ao céu em paz
Ícaro, cera e pena
O Sol na tez
Zéfiro, sob a nuvem
Voo em viés
Fátuo, fogo ou cena
De luz fugaz
Haverá um porém
Meu bem, esta carta é para que você saiba que tudo correu bem até agora. Não há motivos para se preocupar com meu bem estar. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, creio que isso vem com o tempo. Engraçado... O tempo aqui corre de maneira diferente, na verdade: ele caminha usando um passo lento, senil. Realmente, isso causa desconforto a princípio, considerando que eu sempre fazia da minha vida uma vertiginosa corrida. O irônico é ter chegado ao fim em primeiro, vencedor, e descobrir que o imbecil ganhador recebe o prêmio das mãos da própria Morte.
Mas deixemos disso, quero saber notícias de você e das crianças. Saiba que pensei muito em você, naquele derradeiro momento, e também em nossas filhas. São meninas, não são? Eu peço desculpas, minha memória puiu, se desgastou tristemente desde então. Pelo que percebi, não me foi possível mantê-la imaculada, visto que nem mesmo seu nome me vem à cabeça. Nem me recordo com confiança do que havia antes... O que há comigo? Tenho de me lembrar...
A angústia me corrói! Apenas aquela última sensação, ao me apoiar no parapeito, ficou gravada na minha mente, como a marca de Caim. Eu pensava em vocês... E me foi sentenciado esquecê-las, assim como tudo o que amei, para assim sempre me lembrar de que um dia amei, embora não mais haja espaço para se constituir outra coisa na qual eu possa apoiar meu eu. Havia você, havia as crianças e o mundo; agora inexiste para mim algo que interaja, estou preso à minha essência e à sua companheira, a solidão. Preciso que desse vazio me apareça um fio de esperança para agarrar, sua resposta a essa carta seria minha redenção.
Espero tal resposta ansiosamente. Ainda conservo um propósito: busco essa paz comigo mesmo para compensar a culpa que agora experimento. O voo que me trouxe aqui, confesso arrependido, foi o êxtase máximo daquele que vivia ao seu lado. Mas quero me livrar do desamparo que pesa nas costas; ele pesa só de imaginar que deixei alguém no mesmo desamparo! Em meio ao nada eu rogo para que haja uma maneira de me desculpar, de lhe dizer tudo isso. Porém, tudo fica mais difícil quando não se sabe com quem se fala.
Tentarei então traçar a minha despedida do mundo. Quem sabe assim eu não consigo refazer meus passos e achar a ponta solta dessa corda? Havia na cena uma janela, certamente. O lugar... Agora sim, me chegam as imagens. O lugar era o apartamento de minha avó, um sétimo andar de vista linda! Como eu adorava observar por aquela janela as redondezas, sempre imaginando poder voar livremente através dela. Sim, a sensação fugaz de vertigem sempre me seduzia... Até que um dia decidi prová-la por completo. Serei digno de reprovação por ter buscado um toque verdadeiro de vida? Nunca alguém terá tamanha certeza de que se existe de fato! Confesso, o preço é a existência em si. Porém neste momento experimento, acima do desamparo, a recompensa por ter me descoberto em mim.
Não me julgue egoísta, meu bem, nenhuma justiça seria adequada a essa situação. Encontrei meu propósito: estou em paz comigo mesmo. E assim que receber essa carta, saiba que corre tudo bem por agora. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, mas creio que isso vem com o tempo.
Eternamente seu,
Aliquem
Mas deixemos disso, quero saber notícias de você e das crianças. Saiba que pensei muito em você, naquele derradeiro momento, e também em nossas filhas. São meninas, não são? Eu peço desculpas, minha memória puiu, se desgastou tristemente desde então. Pelo que percebi, não me foi possível mantê-la imaculada, visto que nem mesmo seu nome me vem à cabeça. Nem me recordo com confiança do que havia antes... O que há comigo? Tenho de me lembrar...
A angústia me corrói! Apenas aquela última sensação, ao me apoiar no parapeito, ficou gravada na minha mente, como a marca de Caim. Eu pensava em vocês... E me foi sentenciado esquecê-las, assim como tudo o que amei, para assim sempre me lembrar de que um dia amei, embora não mais haja espaço para se constituir outra coisa na qual eu possa apoiar meu eu. Havia você, havia as crianças e o mundo; agora inexiste para mim algo que interaja, estou preso à minha essência e à sua companheira, a solidão. Preciso que desse vazio me apareça um fio de esperança para agarrar, sua resposta a essa carta seria minha redenção.
Espero tal resposta ansiosamente. Ainda conservo um propósito: busco essa paz comigo mesmo para compensar a culpa que agora experimento. O voo que me trouxe aqui, confesso arrependido, foi o êxtase máximo daquele que vivia ao seu lado. Mas quero me livrar do desamparo que pesa nas costas; ele pesa só de imaginar que deixei alguém no mesmo desamparo! Em meio ao nada eu rogo para que haja uma maneira de me desculpar, de lhe dizer tudo isso. Porém, tudo fica mais difícil quando não se sabe com quem se fala.
Tentarei então traçar a minha despedida do mundo. Quem sabe assim eu não consigo refazer meus passos e achar a ponta solta dessa corda? Havia na cena uma janela, certamente. O lugar... Agora sim, me chegam as imagens. O lugar era o apartamento de minha avó, um sétimo andar de vista linda! Como eu adorava observar por aquela janela as redondezas, sempre imaginando poder voar livremente através dela. Sim, a sensação fugaz de vertigem sempre me seduzia... Até que um dia decidi prová-la por completo. Serei digno de reprovação por ter buscado um toque verdadeiro de vida? Nunca alguém terá tamanha certeza de que se existe de fato! Confesso, o preço é a existência em si. Porém neste momento experimento, acima do desamparo, a recompensa por ter me descoberto em mim.
Não me julgue egoísta, meu bem, nenhuma justiça seria adequada a essa situação. Encontrei meu propósito: estou em paz comigo mesmo. E assim que receber essa carta, saiba que corre tudo bem por agora. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, mas creio que isso vem com o tempo.
Eternamente seu,
Aliquem
Inocência
Fiz umas flores no papel...
Ao terminar senti-me um tolo
Boba culpa, ingênuo dolo
Do sutil crime infantil
Fiz no pão desenhos de mel...
Tão doce o dourado miolo!
Um novo ato falho e tolo
Me puniu com culpa senil
O juízo que é imposto
Tolo, quem ouve e nada diz!
Merece jamais ser criança
Sou fiel àquilo que gosto
Tolo, admito, mas feliz!
Eu vivo a honesta bonança
Ao terminar senti-me um tolo
Boba culpa, ingênuo dolo
Do sutil crime infantil
Fiz no pão desenhos de mel...
Tão doce o dourado miolo!
Um novo ato falho e tolo
Me puniu com culpa senil
O juízo que é imposto
Tolo, quem ouve e nada diz!
Merece jamais ser criança
Sou fiel àquilo que gosto
Tolo, admito, mas feliz!
Eu vivo a honesta bonança
Um silêncio
Um silêncio vale mais que a palavra; o que é dito é absoluto, enquanto eu me calo e deixo que cada sílaba fale por si, e cada ouvido ouça o que quiser. Essas que estão aqui são apenas palavras vãs. É mister que haja sempre esclarecimento sem ordem e, acima disso, sem influência.
Entendam o que quiser, quero somente falar. Ironicamente, encontro meu conforto naquelas que tento rejeitar. Pois é, essas malditas palavras são meu ópio, serão minha ruína e enfim minha redenção.
Eu caminho consciente para o precipício que beira um delírio, um mar de fantasia. Essas palavras são de um louco, são malditas! Espero ingênuo por uma mão que me segure antes do derradeiro passo, porque meu medo me impede de parar.
São apenas palavras silenciosas de um louco.
Entendam o que quiser, quero somente falar. Ironicamente, encontro meu conforto naquelas que tento rejeitar. Pois é, essas malditas palavras são meu ópio, serão minha ruína e enfim minha redenção.
Eu caminho consciente para o precipício que beira um delírio, um mar de fantasia. Essas palavras são de um louco, são malditas! Espero ingênuo por uma mão que me segure antes do derradeiro passo, porque meu medo me impede de parar.
São apenas palavras silenciosas de um louco.
Fio de lã
Ovelha ao lado de ovelha
Pronta para outro comando
Pastando na rua, pensando
Com pressa, ficando mais velha
A cada passo, outra passa
Por onde passaram primeiro
Mais pés, mais patas do inteiro
Rebanho no pasto da massa
Pois eu e a massa somos um
Anônimo, somos nenhum
Acima de mim, sou vocês
E eis que eu posso ser dois
Ainda ser eu, e depois
Ser, sim, alguém entre nós três
Pronta para outro comando
Pastando na rua, pensando
Com pressa, ficando mais velha
A cada passo, outra passa
Por onde passaram primeiro
Mais pés, mais patas do inteiro
Rebanho no pasto da massa
Pois eu e a massa somos um
Anônimo, somos nenhum
Acima de mim, sou vocês
E eis que eu posso ser dois
Ainda ser eu, e depois
Ser, sim, alguém entre nós três
Autor de si
O quadro emanava cores e formas astrais, acariciando o ego de seu autor. O Pintor dava apenas retoques finais, sabendo ser sua obra quase finita sobre o cavalete. E que obra! Ela elevava a arte a um nível sublime, inflando no observador todas as sensações capazes de serem estimuladas pelo belo. E que belo! O Pintor queria mostrá-la para todos, sair de seu apartamento para a rua, exibindo seu troféu de satisfação!
Mas aí ele para. Há algo errado com seu quadro. Olhando com cuidado, o Pintor percebe uma aparência um tanto cabisbaixa nele. O que havia de errado?
- Não sei, tenho me questionado... Bem, sobre esses paradigmas de sentido da vida e seus propósitos. Tu, Pintor, já te perguntaste por quê?
- Hã?
- Nunca foste curioso com sua existência? Na minha condição de obra, me aflige não compreender por quê eu sou quem sou. Tu, criador, és capaz de me sanar as dúvidas que te exponho? Realmente necessito ouvir isso de ti.
- Mas eu não fiz você com um objetivo, sabe. Eu simplesmente te fiz, sem esperar nada disso.
- Isso soa muito fútil, é impossível minha criação ter sido baseada num ato espontâneo de um homem! Seria destroçar minhas expectativas; e tu ainda por cima defenestras meu ego pela janela desse apartamento, agora tão insensível e sem alma. Não tens compaixão, ou não és sábio como eu esperava...
O Pintor se sensibilizou com o lírico desconsolo do jovem quadro, mas que podia fazer? A arte estava correndo pelas suas veias, não sendo calculada por seu cérebro; pelo menos, não conscientemente. Essa mesma arte era fruto do que ele sentia, não do que planejava. Será que um quadro entenderia isso?
- Não faz muito sentido para mim... Que queres dizer?
- Tente ver dessa forma: você é arte. Ela não precisa de um motivo empurrando-a, apenas de um gatilho acionado, e assim explodem formas e cores. Se eu resolver fazer um vaso, escrever um conto ou cantar, estou querendo mostrar que sinto vontade de ser humano. E você passa a existir...
- ...Afinal, eu sou arte... Sou eu, mas meu eu é tudo que fazes para te sentir mais próximo de ti, expondo-te pra te apropriar do que imagino ser ego, ser eu, na verdade ser tu. Pintor, como é o ser humano? Como é ser humano...?
- Pois é, como posso te explicar? É mais fácil pôr assim: um animal come, descome e dorme. É natural, se espera isso dele. Ele mesmo desconhece outras ações que o confortem, não é? Mas com um homem é diferente. Ele procura além do instinto, querendo o que lhe for belo. Quando o Pintor trabalha, ele trabalha pelo prazer de gerar prazer, por meio de algo que não é necessário à vida, mas que a torna agradável de se viver!
A alegria do Pintor tomou conta de seu quadro, lhe devolvendo cores e formas vivas como um astro de luz própria. Se sentindo novamente orgulhoso, ele suspirou profundamente e olhou pela janela de seu apartamento, buscando o mundo lá fora. Viu uma cidade densa e movimentada, um formigueiro de pessoas se locomovendo apressadas e atarefadas. O mundo que ele achou tentava esforçadamente parecer concreto e frio. Mas em cada cantinho da imagem via traços de emoção e imaginação. Seus olhos voaram da janela até pousar carinhosamente no quadro. Depois viraram para dentro de si e perguntaram quem na verdade seria a obra de arte, afinal.
Mas aí ele para. Há algo errado com seu quadro. Olhando com cuidado, o Pintor percebe uma aparência um tanto cabisbaixa nele. O que havia de errado?
- Não sei, tenho me questionado... Bem, sobre esses paradigmas de sentido da vida e seus propósitos. Tu, Pintor, já te perguntaste por quê?
- Hã?
- Nunca foste curioso com sua existência? Na minha condição de obra, me aflige não compreender por quê eu sou quem sou. Tu, criador, és capaz de me sanar as dúvidas que te exponho? Realmente necessito ouvir isso de ti.
- Mas eu não fiz você com um objetivo, sabe. Eu simplesmente te fiz, sem esperar nada disso.
- Isso soa muito fútil, é impossível minha criação ter sido baseada num ato espontâneo de um homem! Seria destroçar minhas expectativas; e tu ainda por cima defenestras meu ego pela janela desse apartamento, agora tão insensível e sem alma. Não tens compaixão, ou não és sábio como eu esperava...
O Pintor se sensibilizou com o lírico desconsolo do jovem quadro, mas que podia fazer? A arte estava correndo pelas suas veias, não sendo calculada por seu cérebro; pelo menos, não conscientemente. Essa mesma arte era fruto do que ele sentia, não do que planejava. Será que um quadro entenderia isso?
- Não faz muito sentido para mim... Que queres dizer?
- Tente ver dessa forma: você é arte. Ela não precisa de um motivo empurrando-a, apenas de um gatilho acionado, e assim explodem formas e cores. Se eu resolver fazer um vaso, escrever um conto ou cantar, estou querendo mostrar que sinto vontade de ser humano. E você passa a existir...
- ...Afinal, eu sou arte... Sou eu, mas meu eu é tudo que fazes para te sentir mais próximo de ti, expondo-te pra te apropriar do que imagino ser ego, ser eu, na verdade ser tu. Pintor, como é o ser humano? Como é ser humano...?
- Pois é, como posso te explicar? É mais fácil pôr assim: um animal come, descome e dorme. É natural, se espera isso dele. Ele mesmo desconhece outras ações que o confortem, não é? Mas com um homem é diferente. Ele procura além do instinto, querendo o que lhe for belo. Quando o Pintor trabalha, ele trabalha pelo prazer de gerar prazer, por meio de algo que não é necessário à vida, mas que a torna agradável de se viver!
A alegria do Pintor tomou conta de seu quadro, lhe devolvendo cores e formas vivas como um astro de luz própria. Se sentindo novamente orgulhoso, ele suspirou profundamente e olhou pela janela de seu apartamento, buscando o mundo lá fora. Viu uma cidade densa e movimentada, um formigueiro de pessoas se locomovendo apressadas e atarefadas. O mundo que ele achou tentava esforçadamente parecer concreto e frio. Mas em cada cantinho da imagem via traços de emoção e imaginação. Seus olhos voaram da janela até pousar carinhosamente no quadro. Depois viraram para dentro de si e perguntaram quem na verdade seria a obra de arte, afinal.
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