Meu bem, esta carta é para que você saiba que tudo correu bem até agora. Não há motivos para se preocupar com meu bem estar. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, creio que isso vem com o tempo. Engraçado... O tempo aqui corre de maneira diferente, na verdade: ele caminha usando um passo lento, senil. Realmente, isso causa desconforto a princípio, considerando que eu sempre fazia da minha vida uma vertiginosa corrida. O irônico é ter chegado ao fim em primeiro, vencedor, e descobrir que o imbecil ganhador recebe o prêmio das mãos da própria Morte.
Mas deixemos disso, quero saber notícias de você e das crianças. Saiba que pensei muito em você, naquele derradeiro momento, e também em nossas filhas. São meninas, não são? Eu peço desculpas, minha memória puiu, se desgastou tristemente desde então. Pelo que percebi, não me foi possível mantê-la imaculada, visto que nem mesmo seu nome me vem à cabeça. Nem me recordo com confiança do que havia antes... O que há comigo? Tenho de me lembrar...
A angústia me corrói! Apenas aquela última sensação, ao me apoiar no parapeito, ficou gravada na minha mente, como a marca de Caim. Eu pensava em vocês... E me foi sentenciado esquecê-las, assim como tudo o que amei, para assim sempre me lembrar de que um dia amei, embora não mais haja espaço para se constituir outra coisa na qual eu possa apoiar meu eu. Havia você, havia as crianças e o mundo; agora inexiste para mim algo que interaja, estou preso à minha essência e à sua companheira, a solidão. Preciso que desse vazio me apareça um fio de esperança para agarrar, sua resposta a essa carta seria minha redenção.
Espero tal resposta ansiosamente. Ainda conservo um propósito: busco essa paz comigo mesmo para compensar a culpa que agora experimento. O voo que me trouxe aqui, confesso arrependido, foi o êxtase máximo daquele que vivia ao seu lado. Mas quero me livrar do desamparo que pesa nas costas; ele pesa só de imaginar que deixei alguém no mesmo desamparo! Em meio ao nada eu rogo para que haja uma maneira de me desculpar, de lhe dizer tudo isso. Porém, tudo fica mais difícil quando não se sabe com quem se fala.
Tentarei então traçar a minha despedida do mundo. Quem sabe assim eu não consigo refazer meus passos e achar a ponta solta dessa corda? Havia na cena uma janela, certamente. O lugar... Agora sim, me chegam as imagens. O lugar era o apartamento de minha avó, um sétimo andar de vista linda! Como eu adorava observar por aquela janela as redondezas, sempre imaginando poder voar livremente através dela. Sim, a sensação fugaz de vertigem sempre me seduzia... Até que um dia decidi prová-la por completo. Serei digno de reprovação por ter buscado um toque verdadeiro de vida? Nunca alguém terá tamanha certeza de que se existe de fato! Confesso, o preço é a existência em si. Porém neste momento experimento, acima do desamparo, a recompensa por ter me descoberto em mim.
Não me julgue egoísta, meu bem, nenhuma justiça seria adequada a essa situação. Encontrei meu propósito: estou em paz comigo mesmo. E assim que receber essa carta, saiba que corre tudo bem por agora. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, mas creio que isso vem com o tempo.
Eternamente seu,
Aliquem
Acho que eu não poderia escolher um parceiro melhor para escrever um livro.
ResponderExcluirGostei bastante!
Outra coisa, tenho outro blog agora ( o.O? ) !
É, eu também não sei por que...Mas ta lá.
O propósito sempre foi surpreender-te, mas como PULP em suas músicas me falou sobre "common people", procurei nunca fazê-lo. Este é o primeiro registro escrito que faço mostrando o quanto gosto de ler seus textos..não pense que escrevo pelo fato de não poder comentá-los de outra forma daqui a 1 mês e meio, mas pela circunstância inversa, em que você me surpreendeu. Me emocionei muito ao ler esse texto calmamente(ja tinhamos lido juntos), é impressionante como sua visão da essência humana faz sentido pra mim, o sentimento de catarse foi real. Sinta-se nobre, pois se Aristóteles e Freud estavam certos sobre esse sentimento, entao como escritor você atingiu seu propósito.
ResponderExcluirDragão Filosófico.
Novamente,você me surpreendeu com seus textos profundos e filosóficos.(Apesar de que não entendo nada de Filosofia!)
ResponderExcluirMesmo assim,o pouco que consegui extrair do seu texto-carta é maravilhoso
Você já pensou em fazer um livro? Bjbj
Você matou um poeta. Que maldade!
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