Eu tenho medo da dor

não é da morte
não é esporro, bronca
responsabilidade
nem das contas

chego a tremer um pouco diante
de informação
pois consciência tem a correta densidade do chumbo
esse material que reveste cápsula de arma de fogo
e protege contra radiação

hesitar,
mesmo,
eu hesito
antes de beijar
dar um abraço que tchau, até logo
quando sei que até nunca mais, dessas
poucas infelicidades que viajar
nos traz

quando recebi a ligação com
a morte de meu avô
vinda do outro lado da linha
eu não tive medo
tive paz
por ele
por ter defendido uma causa
qualquer
ainda que só a vida
e (per)durado

eu tenho medo é da dor
física e que ativa os nervos
e, confesso, me arrepia
imaginar um corte no dedo indicador esquerdo
meu sangue deitando no
chão
aterrador

Complete com as headlines dos jornais

eu nunca vi uma bala
lacerando a pele de uma criança que
corria para longe da fumaça
tóxica
dispersa em um bairro residencial

não pretendo
conhecer o cheiro de
gente morta
por traçante faca bota cuspe
arma

jamais presenciei explosivos
de fósforo ou napalm
cozinhando calmamente os civis
como quem não tem pressa
de apagar
a
luz

Daquelas duas cerejeiras em frente à sua casa

ah, vá

há de ter correspondente
esse homem largado na alcova de um país estrangeiro
enquanto imagina um ou outro futuro
do pretérito
que morreu
amém

além de ter correspondência
a caixa destinada aos correios merece
também postais com fotos do teu rosto
um selo raro colado à língua
rosa, úmida
amém

e teus olhos de gueixa maculados pela distância (espaçotemporal)
foto velha, dessas que queimaram nas bordas
já me serviria
ao propósito de não ter
propósito algum
alguém?

(tu)

cartas de
tarô
ou apenas notícias
me tragam consolo ante o medo de perder os tênues fios de memória que te seguram, como um último fôlego debaixo de seis metros de oceano, e sustentem a foto desses teus olhos rasgados que me tatuaram no fundo da retina debaixo da sombra daquelas duas cerejeiras em frente à sua casa

Minha puta vontade

se vende ao prazer
se venda para caminhar cega
tátil
seguir o calor da rua
prostituta desrazão

"Estou apenas a vestir meu paletó, darling. Fumar um cigarro, vendo as pessoas. O paletó? É para quebrar o vento. Vou andar por aí e logo volto. E os cigarros? Ah, são para..."

esta vadia me carrega pela mão
entrelaça os dedos para
me puxar com firmeza
através das pedras
portuguesas
galegas, alemtejanas
(cariocas)

puta,
"Me carrega!"
não sei se interjeição
ou súplica

Chegaste algures

a partir de onde se está
se se parte cedo, pega o sol ainda a
leste e talvez um vento
alísio

viajar me faz necessário ao homem inerte
e A Estrada, uma infinita
cobra que come sua própria cauda
é combustível que queima na
medida correta em que cresce

oroboro preta listrada
que guia
e queima,
afoga
de calor e um pouco de frio
na solidão do automóvel que Ela digere
viajar tem mesmo um quê de digestivo
no intestino da cobra

23 de agosto, página solta de um diário

as marés funcionam assim: meio-dia vazia, seis da tarde cheia, meia-noite vazia, seis da manhã cheia. agora, os pescadores - como eles funcionam? sei que eles zarpam na madrugada. sei também que voltam com o sol recém-raiado, portanto devem acompanhar o vazar da companheira maré para regressar na cheia. é provável que a traiçoeira maré, caso percam o seu passo nessa dança, se torne vilã. não deve haver lealdade ou devoção do pescador pelo mar - apenas respeito e muita astúcia.