Retorno à casa

liga a famosa música de transar
e deixa as luzes estroboscópicas
se derramarem sobre a decoração infantil
no canto da mesa de trabalho
fazendo companhia ao computador
à roupa amassada, à caixa de óculos
escuros perfeitos para disfarçar a ressaca
de insônia depois do agito na madrugada
eu só consigo pensar em como te provar
eu só consigo provar
mais um
ponto
racional sobre
a questão que discutíamos um par
de semanas atrás e que teima em voltar
para o telão nesse grande estádio vazio que é
a minha cabeça a essa hora, e eu sei
eu sei, eu me odeio
todo notívago é deficiente de amor próprio
em termos inconscientes
não sobram muitas maneiras de fugir
se você possuir um par de sapatos confortáveis
vá fumar um cigarro a passos curtos
se possuir uma bicicleta, não se vá
sem antes fornecer gelinhos para a água
que habita a garrafa térmica
mas se você
ah, se você possuir
uma carruagem possante
dezesseis dezenas de cavalos fósseis sob o capô
não hesite
corra
com a música de transar roendo as caixas de som
e a janela aberta pra deixar entrar o ar rarefeito
dessa atmosfera porcamente iluminada
pelos postes que piscam e o eventual letreiro
de birosca
senta
sente a adrenalina
de saber que é só errar um reflexo
e o aço embrulha para presente, tanto faz
tanto fez que agora não sabe para onde ir
retorna à casa
apaga a luz
acalma o batimento

Postal

foge, foge!
tentam fugir escaralhados
de um vermelho que nasce quadrado
por puro reflexo
os caretas
eles acordam
em um bocejo
o bocejo matutino dos caretas
não toma conhecimento
do trem que rompe o horizonte
em linha
e lênin
sobre a locomotiva, herói de capa e enxada
desce para tirar água do joelho
engatilhar seu fuzil
e disparar cartas


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transdução do poema sem título de Augusto Meneghin:

ninguém nas manhãs
irá contra
o serviço postal
do sol

A geometria nasceu em berço turco

meu corpo
desconforto
a pisada fora do ritmo entrelaça os pés
na transposição dos riscos na calçada
os braços pendem dos ombros
tanto pelo descompostura aprendida nos anos
quanto pelo peso do céu
o descanso reside em esquecer as pequenas
desproporcionalidades ao redor
tanta aresta
tanta brutalidade
meu corpo, nem sei
com quantos compassos se traça o homem
quem sabe?
a memória funciona em circuncírculos
que avançam no plano em intervalos de
centímetros, no espaço de um segundo e mais outro e mais
outro, mantendo essa fina
mediatriz entre o desapegar e a proa

(o ortocentro encontra-se fora
do triângulo, se este for obtuso)

e meu corpo segue em desalinho
escorregando pelas beiradas da cama
reunindo essa poça disforme, de área incalculável
que aspiraria ao infinito se houvesse algum humor
nos ditames geométricos de minha composição
mas eu sobro líquido, quase riso
e volto a esquecer as pequenices
quem lembra
de todo o peso? todo o céu?
tanta possibilidade
tanto padrão
as repetições quase satisfazem, as estruturas
o mínimo basta para deitar
o peso do céu na barriga de Geia
o peso dos ombros no chão do quarto
roçando o braço na barra do lençol com
desenhos cartográficos
e descansar

O chão é lava

piso
pulo
olho pro sapato
com o cuidado em errar
every crack on the sidewalk
(on, não in)
toda rachadura na calçada é
uma protuberância
uma exotermia
toda essa liberação de calor
me faz lembrar que o universo não
compreende o frio
a rua ensina duas coisas
uma é a conversar com estranhos
essas nobres figuras
constituídas apenas de passado
a outra é a ter método
caminhar é uma regência
um pé em falso
compasso em 7/8

Das ultrapassagens em faixa contínua

as veias pulsam carros
com média de
1,32 passageiro
carregam o sangue venoso
repleto das impurezas do corpo
a urbe, um corpo
entidade colossal de asfalto
vergalhão e esse cadinho de calçada
a cidade agride suas células

a construção civil odeia a pequena
escala do cidadão
as alimentadoras secam o gargalo
dos bairros avizinhados
tão distantes
tão perto de sufocar
o sangue arterial a plenos
pulmões, bombeado a contrações
nem tem força pra seguir
toda via expressa às seis

é um corredor polonês

Dia diá

sístolediástole
bomba bomba pela artéria o
ar fresco no compasso da valsa
umdois
bom dia, caros ouvintes
a vida segue normal, apenas
levemente engarrafada na Linha Vermelha
sístolediástole
plaqueta ante plaqueta
ninguém à volta sabe
a ciranda que é se manter vivo, ninguém
tem ciência do binarismo contrátil
essencial para coçar atrás da orelha
sístolediástole
a cabeça pendula o lábio boceja a pálpebra
abre os olhos e vê
aquilo que eu vejo
só eu vejo
sístolediástole
desejo desequilibrado
desse jeito que só
o corpo produz em um dia seu próprio peso em atp
sístolediástole
e no mesmo dia consome esse peso
e no mesmo dia consome seu peso
sístolediáspora
e todas as células do meu corpo migram