O gosto do malte

Com uma cerveja doce
Encanta a minha flauta
Nietzsche, uns macacos
Um bom filme e os convivas.

Com uma cerveja salgada
Eu tempero um samba
Brincando de bamba
Em uma noite quente.

Com uma cerveja azeda
Ignoro conversa fiada
E fecho o rosto, enjoado
Do gosto de solidão.

Com uma cerveja amarga
Sento com velhos companheiros
Ombro a ombro com os parceiros
Celebro o bom do que já foi.

Os abutres

Foi quando olhei para o alto
Que notei, moribundo
A Fome descendo em espiral do céu.
Deitara por dor
Ou cansaço
Não importa.
Olhava para cima, porque então
Não mais reagia ao chão.
"Os pontos, o que serão?"

Havia naquelas tantas asas
Uma morbidez digna.
Não sabia ainda
Talvez nunca venha a saber
Uma resposta
Para sua vinda.
Infrutífera questão
Eu perguntava em vão.
"Quando esses carniceiros virão?"

A Natureza descia em mim
E o punhado de terra
Que insistia em sustentar meu parco corpo
É quem mostrou
Quanta frieza
E quanta beleza
Eu teria em me deixar.
Espreguicei-me no conforto da areia,
O roto começou a puir.
Não me importa quem serão...
Ignoro saber quando virão...
"Venham agora, e me abracem como a um irmão!"

Umas frases de desencontro

Espero cada minuto, cada
Segundo, cada instante

Olho para o relógio, mas
Ele teima em ficar parado

Procuro o que fazer,
Mas não há nada importante

Nada que consiga me
Manter ocupado

Nada que consiga ser
Tão constante

Quanto o desejo
De estar ao seu lado

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Você destrói o meu
Discernimento

Me sacia através
De sofrimento

O tempo voa
Preguiçoso, lento

Até o momento
Em que sai em disparada

Você, próxima
Misteriosa e calada

Me olha e me mata
Sem dizer nada

Ironicamente
Com a vida acabada

Me sinto mais vivo
E você é a culpada

Pois é o veneno
Que mais me agrada

Debaixo da arrebentação

Aquele homem possuía fortes lembranças de uma certa ponte da cidade. Frequentara quando criança, usando-a de trampolim para mergulhar em um infinito salgado e se deixar levar pela maré. A ponte que abrigava barcos, a que sustentava carros, que equilibrava pedestres. Passarela branca sobre a entrada de uma área protegida perto do porto. Ele a cruzava nos dias de chuva, sempre olhando para o mar que lhe banhava os pés, nunca sabia se da ponte ou dele. Sob sol de verão, não importava. O corpo buscava mergulhar até a base da sustentação, parecia ser uma provação chegar tão fundo só para mostrar ser capaz! E ele era. Seus pulmões doíam enquanto apenas um punhado de raios solares iluminava os pés daquela apoteose submersa, invisível a olhos distraídos.

Passaram-se anos e o homem se distanciou. Era homem do continente agora, insensível à maresia quase sólida daquele antigo recanto. Ele era homem telúrico: desaprendeu a nadar. Nem chegou a reparar quando isso aconteceu. Também ignorou quando suas narinas desacostumaram ao cheiro constante do sal, assim como a pele foi se tornando seca. Vivia sobre o chão que equilibrava prédios, sustentava avenidas e abrigava poluição. Havia carros, pessoas também, mas sempre retilíneos, enfileirados. O homem sentia falta de algo, mas não sabia exatamente o que.

Constantemente em ofício; O homem era ocupação. Quanto mais se ocupava, mais oportunidades de se sobrecarregar ele tinha. E ele o fazia. Cada vez mais, cada onda de trabalhos arrebentava, exercícios espumavam sobre si, suas leituras corriam para os lados e se derramavam sobre o vazio de uma cama dura e mal iluminada. Apenas o sexo não tinha ritmo. O homem precisava escapar da sua vida e não sabia para onde correr. Sempre escorregava quando começava seus passos.

Fugir era inútil, então ele se entregou.

Apenas deitou e deixou que a maré o levasse um pouco. Lembrou, alegre, daquelas marolas que lhe entregavam aos braços da ponte branca. A imagem não durou muito à sua volta, logo alguém veio lhe trazer à tona. Disseram-lhe que a vida seguia e que era preciso viver para acompanhá-la de perto. O homem mergulhou de novo, várias vezes mais ele tentou se desvencilhar das mãos que o traziam para a superfície, mas sempre havia dedos para agarrar-lhe a gola e impedir que se afogasse. A frustração foi crescendo por dentro, doendo como um pulmão privado de ar. E o ar nunca vinha, apenas goles de água. A respiração rítmica deu lugar a soluços em leve desespero, logo os soluços eram pranto e as lágrimas inundavam o quarto; paredes claustrofóbicas, a água escorria por elas e pelo chão ficava.

Chega um momento em que o ar acaba. Pois nesse momento, a solução do homem foi se afogar.

Imolação

Ela me queima! Essa que perfura
Todo meu frio, essa inverdade:
Você amou! Loucura, é loucura...
Mas a mentira inventa saudades.

Minha lembrança da temperatura
Ainda arde como aquela tarde
De um verão do passado sem cura.
Sem um começo, a cena me arde.

Essa lembrança quente nunca finda,
Nunca irá. Serei cego, ainda
Que a verdade passe com alarde.

À luz do fogo, sei ser incapaz
De qualquer dia alcançar a paz,
Por pura perda irreal que arde.

Nutrir meu pesadelo

Olhos fechando no mundo.
A sensação de perigo
Que me congela o umbigo
Teme o sono profundo.

Sinto teu peso nas costas.
Só, estou preso contigo,
Fardo obeso em abrigo
Sob o que rezo; tu gostas.

Queres que logo me deite,
Sentes a sede, as feras,
Vezes nem mesmo esperas

Para sorver em deleite,
Enquanto meu lobo fores,
As gotas dos meus temores.