Ele já estava tendo essa conversa há horas, entretanto seu interlocutor insistia em não retrucar. Fica difícil ouvir uma resposta quando se está falando com o Universo. O garoto não se importava, na realidade; embora sua realidade tivesse sido distorcida havia dias. Dias talvez, talvez anos. Ele iria no futuro pensar na tal conversa e rir, contando para seus filhos como era ser jovem anos atrás. E quando as crianças, pelo menos duas, forem para a cama sonhando com dinossauros coloridos e histórias de gente adulta, o garoto não será mais garoto. A lágrima pertinente que irá escorrer amanhã, como escorre agora, leva a conta-gotas sua juventude. O tempo passa para ele, mas não para seu interlocutor. O Universo desconhecia as belezas do envelhecimento porque sua existência era condição para que se contassem as horas, e não o contrário. Como explicar para ele que em um certo momento, o momento certo brilhou para um homem?
O Universo então respondeu com o seu silêncio. Ao menos o garoto interpretou assim, e ficou satisfeito por não estar falando sozinho. Esse mesmo menino continou com seu argumento:
- Livre do tempo a gente não sonha, não sente saudade nem ama; a gente se apega porque sabe que vai perder. E quem pensaria que a liberdade, princípio primeiro da consciência humana, poderia representar algum perigo? Pois eu quero envelhecer, e quero envelhecer lembrando que vivi amando e perdendo. Melhor do que existir e suplantar a afeição pelo que fenece. Definhar, por um lado, é um processo capaz de motivar o maior esforço de superação. E eu digo que qualquer estória deve ter sua incerteza localizada em seu meio, e não em seu fim. Qualquer estória, qualquer vida, ou talvez até mesmo os dias e os anos mereçam a dádiva da dúvida.
Uma lágrima outra caiu nessa hora, mas não fora do garoto. Começara a chover.
- Viu como você é capaz de entender? Como deve ser triste não saber o valor de uma ruga. Mais que uma ruga, uma pergunta ou uma lembrança. As rugas são apenas consequências... Nosso rosto fica contraído pelo esforço de rememorar os questionamentos da juventude. As rugas são apenas consequências...
Porém o garoto ainda não conseguira falar abertamente do ponto em que queria chegar. Tinha vergonha, medo de se sentir tolo na frente de tamanha autoridade. O Universo seria para ele um Deus, um irmão e um juiz. Todos escrutinavam suas ações, e provar para eles suas intenções era das mais difíceis iniciativas de sua vida. No fundo, essa conversa era apenas isso, uma conversa? Não, não poderia ser. Se não fosse sério, ele não teria o Universo, em sua trindade, diante de si. Portanto lhe faltava coragem ou certeza, e ambas compartilhavam um inimigo comum: o medo.
- Medo? Que assim seja, não temo ele. Eu lhe venço na ironia, se quiser me enfrentar! Sim, sinto o medo como qualquer um que já pensou três vezes antes de falar. Quero deixar claro que não gostaria que ele fosse embora. Gosto da sensação de estômago embrulhado quando alguém que importa está se afastando, isso é coerente. Gosto da sensação nas mãos, quando elas tremem, antes de me expor. Gosto da vergonha antes do primeiro beijo. E gosto de dizer adeus.
Foi uma vitória fácil, pois ele era um inimigo antigo e previsível. Todo o temor que assolava os dedos do garoto parou de agitá-los. Ele repousou os dedos diante do rosto, entrelaçados, depois deitou sua testa sobre os punhos. Sem notar, ficou em uma posição de oração. Era a hora certa...
- Sua maior qualidade é o infinito, mas já provei que isso não é importante. Agora que tenho você ao meu nível, vou mostrar como é insignificante aquilo que lhe comove e lhe segura no chão. Abdiquei de minha juventude, de minha segurança e de minha certeza. Isso porque queria ser abraçado por um momento. Esse momento por um instante realmente me abraçou! Todas as formas de energia que movem sua (ou nossa) matéria convergiram um pouco para mim. Egoísmo? Sim, pode parecer que é; ainda assim o faria de novo, e de novo... Porque sentir afeto é a maior recompensa que um mortal pode ter. É sua maior maldição também, mas quem liga? Agora você já sabe porque roubei de você essas horas: pra lhe dizer que amei!
Então era isso?
O garoto tinha certeza, mas o Universo entrou em crise. Por que dedicou tanta atenção a um simples garoto tolo? Havia mais dimensões naqueles poucos metros que os separavam do que o menino seria sequer capaz de entender! Fora um truque, só podia ser, mas... Foi nesse momento que o grande ser percebeu: acabara de convergir para o garoto, tomara forma e presenciara a agonia feliz pela qual ele passava. Como fora ingênuo! O Universo havia entrado no jogo, capturado pelo menino. Agora pretendia sentir raiva. Não aconteceu, não foi capaz, e o grande ser começou a se preocupar com o que se passava.
O garoto deu um sorriso, chorando mais um pouquinho, e executou o Universo com um tiro de misericórdia na boca do estômago: deixara-o com medo. A partir desse momento eles se mantiveram abraçados constantemente, sem saber. Tinham medo da verdade.
O gosto do malte
Com uma cerveja doce
Encanta a minha flauta
Nietzsche, uns macacos
Um bom filme e os convivas.
Com uma cerveja salgada
Eu tempero um samba
Brincando de bamba
Em uma noite quente.
Com uma cerveja azeda
Ignoro conversa fiada
E fecho o rosto, enjoado
Do gosto de solidão.
Com uma cerveja amarga
Sento com velhos companheiros
Ombro a ombro com os parceiros
Celebro o bom do que já foi.
Encanta a minha flauta
Nietzsche, uns macacos
Um bom filme e os convivas.
Com uma cerveja salgada
Eu tempero um samba
Brincando de bamba
Em uma noite quente.
Com uma cerveja azeda
Ignoro conversa fiada
E fecho o rosto, enjoado
Do gosto de solidão.
Com uma cerveja amarga
Sento com velhos companheiros
Ombro a ombro com os parceiros
Celebro o bom do que já foi.
Os abutres
Foi quando olhei para o alto
Que notei, moribundo
A Fome descendo em espiral do céu.
Deitara por dor
Ou cansaço
Não importa.
Olhava para cima, porque então
Não mais reagia ao chão.
"Os pontos, o que serão?"
Havia naquelas tantas asas
Uma morbidez digna.
Não sabia ainda
Talvez nunca venha a saber
Uma resposta
Para sua vinda.
Infrutífera questão
Eu perguntava em vão.
"Quando esses carniceiros virão?"
A Natureza descia em mim
E o punhado de terra
Que insistia em sustentar meu parco corpo
É quem mostrou
Quanta frieza
E quanta beleza
Eu teria em me deixar.
Espreguicei-me no conforto da areia,
O roto começou a puir.
Não me importa quem serão...
Ignoro saber quando virão...
"Venham agora, e me abracem como a um irmão!"
Que notei, moribundo
A Fome descendo em espiral do céu.
Deitara por dor
Ou cansaço
Não importa.
Olhava para cima, porque então
Não mais reagia ao chão.
"Os pontos, o que serão?"
Havia naquelas tantas asas
Uma morbidez digna.
Não sabia ainda
Talvez nunca venha a saber
Uma resposta
Para sua vinda.
Infrutífera questão
Eu perguntava em vão.
"Quando esses carniceiros virão?"
A Natureza descia em mim
E o punhado de terra
Que insistia em sustentar meu parco corpo
É quem mostrou
Quanta frieza
E quanta beleza
Eu teria em me deixar.
Espreguicei-me no conforto da areia,
O roto começou a puir.
Não me importa quem serão...
Ignoro saber quando virão...
"Venham agora, e me abracem como a um irmão!"
Umas frases de desencontro
Espero cada minuto, cada
Segundo, cada instante
Olho para o relógio, mas
Ele teima em ficar parado
Procuro o que fazer,
Mas não há nada importante
Nada que consiga me
Manter ocupado
Nada que consiga ser
Tão constante
Quanto o desejo
De estar ao seu lado
- ----- -
Você destrói o meu
Discernimento
Me sacia através
De sofrimento
O tempo voa
Preguiçoso, lento
Até o momento
Em que sai em disparada
Você, próxima
Misteriosa e calada
Me olha e me mata
Sem dizer nada
Ironicamente
Com a vida acabada
Me sinto mais vivo
E você é a culpada
Pois é o veneno
Que mais me agrada
Segundo, cada instante
Olho para o relógio, mas
Ele teima em ficar parado
Procuro o que fazer,
Mas não há nada importante
Nada que consiga me
Manter ocupado
Nada que consiga ser
Tão constante
Quanto o desejo
De estar ao seu lado
- ----- -
Você destrói o meu
Discernimento
Me sacia através
De sofrimento
O tempo voa
Preguiçoso, lento
Até o momento
Em que sai em disparada
Você, próxima
Misteriosa e calada
Me olha e me mata
Sem dizer nada
Ironicamente
Com a vida acabada
Me sinto mais vivo
E você é a culpada
Pois é o veneno
Que mais me agrada
Debaixo da arrebentação
Aquele homem possuía fortes lembranças de uma certa ponte da cidade. Frequentara quando criança, usando-a de trampolim para mergulhar em um infinito salgado e se deixar levar pela maré. A ponte que abrigava barcos, a que sustentava carros, que equilibrava pedestres. Passarela branca sobre a entrada de uma área protegida perto do porto. Ele a cruzava nos dias de chuva, sempre olhando para o mar que lhe banhava os pés, nunca sabia se da ponte ou dele. Sob sol de verão, não importava. O corpo buscava mergulhar até a base da sustentação, parecia ser uma provação chegar tão fundo só para mostrar ser capaz! E ele era. Seus pulmões doíam enquanto apenas um punhado de raios solares iluminava os pés daquela apoteose submersa, invisível a olhos distraídos.
Passaram-se anos e o homem se distanciou. Era homem do continente agora, insensível à maresia quase sólida daquele antigo recanto. Ele era homem telúrico: desaprendeu a nadar. Nem chegou a reparar quando isso aconteceu. Também ignorou quando suas narinas desacostumaram ao cheiro constante do sal, assim como a pele foi se tornando seca. Vivia sobre o chão que equilibrava prédios, sustentava avenidas e abrigava poluição. Havia carros, pessoas também, mas sempre retilíneos, enfileirados. O homem sentia falta de algo, mas não sabia exatamente o que.
Constantemente em ofício; O homem era ocupação. Quanto mais se ocupava, mais oportunidades de se sobrecarregar ele tinha. E ele o fazia. Cada vez mais, cada onda de trabalhos arrebentava, exercícios espumavam sobre si, suas leituras corriam para os lados e se derramavam sobre o vazio de uma cama dura e mal iluminada. Apenas o sexo não tinha ritmo. O homem precisava escapar da sua vida e não sabia para onde correr. Sempre escorregava quando começava seus passos.
Fugir era inútil, então ele se entregou.
Apenas deitou e deixou que a maré o levasse um pouco. Lembrou, alegre, daquelas marolas que lhe entregavam aos braços da ponte branca. A imagem não durou muito à sua volta, logo alguém veio lhe trazer à tona. Disseram-lhe que a vida seguia e que era preciso viver para acompanhá-la de perto. O homem mergulhou de novo, várias vezes mais ele tentou se desvencilhar das mãos que o traziam para a superfície, mas sempre havia dedos para agarrar-lhe a gola e impedir que se afogasse. A frustração foi crescendo por dentro, doendo como um pulmão privado de ar. E o ar nunca vinha, apenas goles de água. A respiração rítmica deu lugar a soluços em leve desespero, logo os soluços eram pranto e as lágrimas inundavam o quarto; paredes claustrofóbicas, a água escorria por elas e pelo chão ficava.
Chega um momento em que o ar acaba. Pois nesse momento, a solução do homem foi se afogar.
Passaram-se anos e o homem se distanciou. Era homem do continente agora, insensível à maresia quase sólida daquele antigo recanto. Ele era homem telúrico: desaprendeu a nadar. Nem chegou a reparar quando isso aconteceu. Também ignorou quando suas narinas desacostumaram ao cheiro constante do sal, assim como a pele foi se tornando seca. Vivia sobre o chão que equilibrava prédios, sustentava avenidas e abrigava poluição. Havia carros, pessoas também, mas sempre retilíneos, enfileirados. O homem sentia falta de algo, mas não sabia exatamente o que.
Constantemente em ofício; O homem era ocupação. Quanto mais se ocupava, mais oportunidades de se sobrecarregar ele tinha. E ele o fazia. Cada vez mais, cada onda de trabalhos arrebentava, exercícios espumavam sobre si, suas leituras corriam para os lados e se derramavam sobre o vazio de uma cama dura e mal iluminada. Apenas o sexo não tinha ritmo. O homem precisava escapar da sua vida e não sabia para onde correr. Sempre escorregava quando começava seus passos.
Fugir era inútil, então ele se entregou.
Apenas deitou e deixou que a maré o levasse um pouco. Lembrou, alegre, daquelas marolas que lhe entregavam aos braços da ponte branca. A imagem não durou muito à sua volta, logo alguém veio lhe trazer à tona. Disseram-lhe que a vida seguia e que era preciso viver para acompanhá-la de perto. O homem mergulhou de novo, várias vezes mais ele tentou se desvencilhar das mãos que o traziam para a superfície, mas sempre havia dedos para agarrar-lhe a gola e impedir que se afogasse. A frustração foi crescendo por dentro, doendo como um pulmão privado de ar. E o ar nunca vinha, apenas goles de água. A respiração rítmica deu lugar a soluços em leve desespero, logo os soluços eram pranto e as lágrimas inundavam o quarto; paredes claustrofóbicas, a água escorria por elas e pelo chão ficava.
Chega um momento em que o ar acaba. Pois nesse momento, a solução do homem foi se afogar.
Imolação
Ela me queima! Essa que perfura
Todo meu frio, essa inverdade:
Você amou! Loucura, é loucura...
Mas a mentira inventa saudades.
Minha lembrança da temperatura
Ainda arde como aquela tarde
De um verão do passado sem cura.
Sem um começo, a cena me arde.
Essa lembrança quente nunca finda,
Nunca irá. Serei cego, ainda
Que a verdade passe com alarde.
À luz do fogo, sei ser incapaz
De qualquer dia alcançar a paz,
Por pura perda irreal que arde.
Todo meu frio, essa inverdade:
Você amou! Loucura, é loucura...
Mas a mentira inventa saudades.
Minha lembrança da temperatura
Ainda arde como aquela tarde
De um verão do passado sem cura.
Sem um começo, a cena me arde.
Essa lembrança quente nunca finda,
Nunca irá. Serei cego, ainda
Que a verdade passe com alarde.
À luz do fogo, sei ser incapaz
De qualquer dia alcançar a paz,
Por pura perda irreal que arde.
Assinar:
Postagens (Atom)