Fé na corda bamba

Os dedos na ponta de cada pé
Permitem que meu passo saia reto
Equilibrando-me no corpo ereto
Mas os dedos não me resguardam da frustração
E o que empurra o corpo (não fisicamente, mas do lado de dentro)
Ignora aqueles dedos, fazendo-me curvar, perco o centro.

A minha ventura é falha,
Mas brindemos a ela para encorajar:
Boa fortuna à minha ventura,
Que a cura da sorte é andar.

De autoria conjunta de Arthur Rivelo e Rafael Spínola.

Um poema

Ele começa com um amigo
E uma manhã cinzenta de domingo
Na janela, nada mais que um pingo
Quando um fantasma cruzou comigo

Escuto a orquestra do frio
Eu fumo, eu faço fumaça
Eu sou o fantasma em mim
Da morte, matriz; morreu-me a massa

O tempo passa?
O tempo é frio, mas me assa
Me cozinha,
Me enlaça

E enquanto o nada me abraça
Simplesmente esqueço os meios
Absorto em uma visão branca
Me esqueço, me perco, me fluo

Mas que desgraça!
Nunca na vida senti tanto frio
O vidro, meus suspiros embaça
E eu torcendo pra não acabar no vazio

E quando finalmente faço sentido
Sol, céu e mar se invertem
Acabando com o meu abrigo
E no meu mundo se metem

Gelado trio
Amo, da tortura, o frio!
Forte tempo, com força eu torço
Para que, em um tempo largo
Quando eu for mais moço
Seja desse roto rebanho o mago
Que agite do gado o osso
Sol, céu e mar: magros como o tempo
Mar, céu e sol na ponte sobre um rio
Caudaloso com seu vento frio
Gelado trio
Amo, da tortura, o frio!

De autoria conjunta de Arthur Rivelo, Fernanda Prestes, Fernanda Novaes, Gabriel Menezes, Júlia Kastrup, Leonardo Fiuza e Rafael Spínola.

As rugas do Universo

Ele já estava tendo essa conversa há horas, entretanto seu interlocutor insistia em não retrucar. Fica difícil ouvir uma resposta quando se está falando com o Universo. O garoto não se importava, na realidade; embora sua realidade tivesse sido distorcida havia dias. Dias talvez, talvez anos. Ele iria no futuro pensar na tal conversa e rir, contando para seus filhos como era ser jovem anos atrás. E quando as crianças, pelo menos duas, forem para a cama sonhando com dinossauros coloridos e histórias de gente adulta, o garoto não será mais garoto. A lágrima pertinente que irá escorrer amanhã, como escorre agora, leva a conta-gotas sua juventude. O tempo passa para ele, mas não para seu interlocutor. O Universo desconhecia as belezas do envelhecimento porque sua existência era condição para que se contassem as horas, e não o contrário. Como explicar para ele que em um certo momento, o momento certo brilhou para um homem?

O Universo então respondeu com o seu silêncio. Ao menos o garoto interpretou assim, e ficou satisfeito por não estar falando sozinho. Esse mesmo menino continou com seu argumento:

- Livre do tempo a gente não sonha, não sente saudade nem ama; a gente se apega porque sabe que vai perder. E quem pensaria que a liberdade, princípio primeiro da consciência humana, poderia representar algum perigo? Pois eu quero envelhecer, e quero envelhecer lembrando que vivi amando e perdendo. Melhor do que existir e suplantar a afeição pelo que fenece. Definhar, por um lado, é um processo capaz de motivar o maior esforço de superação. E eu digo que qualquer estória deve ter sua incerteza localizada em seu meio, e não em seu fim. Qualquer estória, qualquer vida, ou talvez até mesmo os dias e os anos mereçam a dádiva da dúvida.

Uma lágrima outra caiu nessa hora, mas não fora do garoto. Começara a chover.

- Viu como você é capaz de entender? Como deve ser triste não saber o valor de uma ruga. Mais que uma ruga, uma pergunta ou uma lembrança. As rugas são apenas consequências... Nosso rosto fica contraído pelo esforço de rememorar os questionamentos da juventude. As rugas são apenas consequências...

Porém o garoto ainda não conseguira falar abertamente do ponto em que queria chegar. Tinha vergonha, medo de se sentir tolo na frente de tamanha autoridade. O Universo seria para ele um Deus, um irmão e um juiz. Todos escrutinavam suas ações, e provar para eles suas intenções era das mais difíceis iniciativas de sua vida. No fundo, essa conversa era apenas isso, uma conversa? Não, não poderia ser. Se não fosse sério, ele não teria o Universo, em sua trindade, diante de si. Portanto lhe faltava coragem ou certeza, e ambas compartilhavam um inimigo comum: o medo.

- Medo? Que assim seja, não temo ele. Eu lhe venço na ironia, se quiser me enfrentar! Sim, sinto o medo como qualquer um que já pensou três vezes antes de falar. Quero deixar claro que não gostaria que ele fosse embora. Gosto da sensação de estômago embrulhado quando alguém que importa está se afastando, isso é coerente. Gosto da sensação nas mãos, quando elas tremem, antes de me expor. Gosto da vergonha antes do primeiro beijo. E gosto de dizer adeus.

Foi uma vitória fácil, pois ele era um inimigo antigo e previsível. Todo o temor que assolava os dedos do garoto parou de agitá-los. Ele repousou os dedos diante do rosto, entrelaçados, depois deitou sua testa sobre os punhos. Sem notar, ficou em uma posição de oração. Era a hora certa...

- Sua maior qualidade é o infinito, mas já provei que isso não é importante. Agora que tenho você ao meu nível, vou mostrar como é insignificante aquilo que lhe comove e lhe segura no chão. Abdiquei de minha juventude, de minha segurança e de minha certeza. Isso porque queria ser abraçado por um momento. Esse momento por um instante realmente me abraçou! Todas as formas de energia que movem sua (ou nossa) matéria convergiram um pouco para mim. Egoísmo? Sim, pode parecer que é; ainda assim o faria de novo, e de novo... Porque sentir afeto é a maior recompensa que um mortal pode ter. É sua maior maldição também, mas quem liga? Agora você já sabe porque roubei de você essas horas: pra lhe dizer que amei!

Então era isso?

O garoto tinha certeza, mas o Universo entrou em crise. Por que dedicou tanta atenção a um simples garoto tolo? Havia mais dimensões naqueles poucos metros que os separavam do que o menino seria sequer capaz de entender! Fora um truque, só podia ser, mas... Foi nesse momento que o grande ser percebeu: acabara de convergir para o garoto, tomara forma e presenciara a agonia feliz pela qual ele passava. Como fora ingênuo! O Universo havia entrado no jogo, capturado pelo menino. Agora pretendia sentir raiva. Não aconteceu, não foi capaz, e o grande ser começou a se preocupar com o que se passava.

O garoto deu um sorriso, chorando mais um pouquinho, e executou o Universo com um tiro de misericórdia na boca do estômago: deixara-o com medo. A partir desse momento eles se mantiveram abraçados constantemente, sem saber. Tinham medo da verdade.

O gosto do malte

Com uma cerveja doce
Encanta a minha flauta
Nietzsche, uns macacos
Um bom filme e os convivas.

Com uma cerveja salgada
Eu tempero um samba
Brincando de bamba
Em uma noite quente.

Com uma cerveja azeda
Ignoro conversa fiada
E fecho o rosto, enjoado
Do gosto de solidão.

Com uma cerveja amarga
Sento com velhos companheiros
Ombro a ombro com os parceiros
Celebro o bom do que já foi.

Os abutres

Foi quando olhei para o alto
Que notei, moribundo
A Fome descendo em espiral do céu.
Deitara por dor
Ou cansaço
Não importa.
Olhava para cima, porque então
Não mais reagia ao chão.
"Os pontos, o que serão?"

Havia naquelas tantas asas
Uma morbidez digna.
Não sabia ainda
Talvez nunca venha a saber
Uma resposta
Para sua vinda.
Infrutífera questão
Eu perguntava em vão.
"Quando esses carniceiros virão?"

A Natureza descia em mim
E o punhado de terra
Que insistia em sustentar meu parco corpo
É quem mostrou
Quanta frieza
E quanta beleza
Eu teria em me deixar.
Espreguicei-me no conforto da areia,
O roto começou a puir.
Não me importa quem serão...
Ignoro saber quando virão...
"Venham agora, e me abracem como a um irmão!"

Umas frases de desencontro

Espero cada minuto, cada
Segundo, cada instante

Olho para o relógio, mas
Ele teima em ficar parado

Procuro o que fazer,
Mas não há nada importante

Nada que consiga me
Manter ocupado

Nada que consiga ser
Tão constante

Quanto o desejo
De estar ao seu lado

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Você destrói o meu
Discernimento

Me sacia através
De sofrimento

O tempo voa
Preguiçoso, lento

Até o momento
Em que sai em disparada

Você, próxima
Misteriosa e calada

Me olha e me mata
Sem dizer nada

Ironicamente
Com a vida acabada

Me sinto mais vivo
E você é a culpada

Pois é o veneno
Que mais me agrada