O pombo era o mal necessário daquela cidade,
As amêndoas também.
Os mendigos, o lixo, o asfalto.
Aquele tapete que o passante pisa.
Sem chão não há passante.
Uns poucos flutuam, o resto se arrasta,
O certo é que ninguém se importa,
Mas todos precisam dele
Para seguir para os lados.
Toca pro lado, nas sarjetas paralelas
E os quarteirões quadrados caretas
Não deixam ver a curva do mundo
Que não é redondo.
A esfera é perfeição geométrica
E nosso chão é indigno e imperfeito.
Tem praia, tem montanha,
Mas isso tudo é loteado.
Pra vencer essa organização artificial
Só mesmo o mal,
O mau,
O pombo, o mendigo, o asfalto esburacado.
A fórmula para acordar aquela cidade
Era o cerco do lixo.
Perceptive
A lembrança começou com aquela flor no sapato, presa ali entre os cadarços sujos de caminhar depois da chuva. Estava despedaçada, seus restos depositados despreocupadamente sobre o chão de frio anormal. Assim como a flor. Eu recolhi o que consegui enxergar carinhosamente, botando com cuidado os restos sobre meu caderno em uma débil tentativa de recompô-la. Ela era linda, cheia de cores, apesar do estado deplorável de conservação. Assim como a lembrança.
As pétalas, as cenas, ambas estavam fora de foco. Minha ansiedade foi subindo pela garganta, e só parou quando botei os óculos novamente em frente aos olhos. Eu os havia tirado para descansar os pensamentos. Outra vez com as janelas abertas, minha alma então jorrou as cenas represadas.
Não importa a musa, mas o poeminha que escrevia seguia assim:
"Uma mulher é como um livro novo, um violino em staccato, uma sombra em praia deserta.
Um livro é como um arpegio em um piano, o Centro na quarta-feira, um segundo olhar feminino.
Um contrabaixo é como um bar silencioso, uma ninfomaníaca, uma redondilha em cavalgada.
Uma mesa posta na calçada é como uma mulher espalhafatosa (uma prostituta?), um poeminha de Bandeira, um violão chorando"
A lembrança se perdeu!, seguida da morena flor. A pequena era frágil e não aguentou a sorte que lhe veio junto com o vento e aquele amigo trazendo conversa pela porta.
As pétalas, as cenas, ambas estavam fora de foco. Minha ansiedade foi subindo pela garganta, e só parou quando botei os óculos novamente em frente aos olhos. Eu os havia tirado para descansar os pensamentos. Outra vez com as janelas abertas, minha alma então jorrou as cenas represadas.
Não importa a musa, mas o poeminha que escrevia seguia assim:
"Uma mulher é como um livro novo, um violino em staccato, uma sombra em praia deserta.
Um livro é como um arpegio em um piano, o Centro na quarta-feira, um segundo olhar feminino.
Um contrabaixo é como um bar silencioso, uma ninfomaníaca, uma redondilha em cavalgada.
Uma mesa posta na calçada é como uma mulher espalhafatosa (uma prostituta?), um poeminha de Bandeira, um violão chorando"
A lembrança se perdeu!, seguida da morena flor. A pequena era frágil e não aguentou a sorte que lhe veio junto com o vento e aquele amigo trazendo conversa pela porta.
Dois pontos
Todaessaproximidadecausadesconforto,
Mas a distância é insustentável.
Sou difícil de agradar.
Mas a distância é insustentável.
Sou difícil de agradar.
Ver-te
Há quem ouça o que alego?
Me enxergo como um cego,
Mas eu nem quero mais me ver.
Ser eu mesmo é não mais ser!
E se tantos ouvem, eu prego
Que me nego. A vocês nego
Condição para me conter.
Ser sozinho é mais não ser!
Pois sempre tive tantos egos
Pra vestir, que tive apego
Por alguns em que pude crer.
Nenhum deles mais eu carrego,
Para trás eu ando e chego
A sentir perto, longe ser.
Me enxergo como um cego,
Mas eu nem quero mais me ver.
Ser eu mesmo é não mais ser!
E se tantos ouvem, eu prego
Que me nego. A vocês nego
Condição para me conter.
Ser sozinho é mais não ser!
Pois sempre tive tantos egos
Pra vestir, que tive apego
Por alguns em que pude crer.
Nenhum deles mais eu carrego,
Para trás eu ando e chego
A sentir perto, longe ser.
Aspirações Frias
Cinco graus de puro frio francês cortando o casaco de grife, desses que não esquenta, apenas ostenta. Eu, esperando na fila de embarque para voltar ao Rio, estava me agarrando ao maldito casaco na esperança de espremer um pouco de compaixão dos fios de lã. Com o Charles de Gaulle deserto, minha única distração era tentar imaginar o porquê de tantos lugares pelo mundo receberem esses nomes de milicos famosos. É, o tempo não estava passando. Nesse meio tempo, o casal do meu lado se abraçava firmemente; abraçavam juras que chegaram a me comover por um segundo. Enquanto minha vez não chegava, passei a bolar ataques terroristas à Ponte Rio - Niterói e acabar de vez com essa palhaçada de Costa e Silva todo feriado. Será que ninguém ligava mais pra isso? O casal insistia, chorava , fazia um pequeno drama dantesco naquela fila imóvel. Nem notaram quando atrás deles uma menina, nos seus 13 ou 14 anos de pura inocência, puxou um celular do bolso e começou a filmá-los.
- Meu amor, eu te amo tanto... Promete que vai me ligar quando se lembrar de mim?
- Claro, meu docinho, vou te ligar toda hora! Não vou parar de te ligar...
A pequena cineasta aspirante captava indiscreta o clima meloso. Dava voltas no casal, procurando ângulos de beijo hollywoodiano. Achei fascinante o interesse da menina em cena tão romântica. Indiferentes àquilo, as outras pessoas na fila olhavam seus relógios como se os ponteiros fossem movidos pela força do pensamento. Eu já havia desistido de imitá-las e estava mais interessado era na cena que ia se compondo na minha frente. A menina se esforçava para manter a câmera firme enquanto o casal destilava frases que pareciam ter sido retiradas de algum filme recente que tivesse “amor” no título. Querendo saciar minha curiosidade, cheguei-me perto da menina e fui puxando conversa.
- Eles estão realmente inspirados, esses dois. E aí, menina, como está indo a filmagem?
- Ah, tio, é pra um curta-metragem. Pra escola.
Tio!? Vá para o inferno.
- Legal. É sobre o que? Amor, lugares românticos?
- Não. É sobre como as pessoas ficam idiotas quando estão apaixonadas.
A fila começou a andar. Voltei devagar para perto das minhas malas e esfreguei as mãos para espantar um pouco o frio. Prometi a mim mesmo duas coisas: começar a fumar quando voltar pra França e botar na cabeceira do berço da minha futura criança alguns Neruda, só por precaução.
- Meu amor, eu te amo tanto... Promete que vai me ligar quando se lembrar de mim?
- Claro, meu docinho, vou te ligar toda hora! Não vou parar de te ligar...
A pequena cineasta aspirante captava indiscreta o clima meloso. Dava voltas no casal, procurando ângulos de beijo hollywoodiano. Achei fascinante o interesse da menina em cena tão romântica. Indiferentes àquilo, as outras pessoas na fila olhavam seus relógios como se os ponteiros fossem movidos pela força do pensamento. Eu já havia desistido de imitá-las e estava mais interessado era na cena que ia se compondo na minha frente. A menina se esforçava para manter a câmera firme enquanto o casal destilava frases que pareciam ter sido retiradas de algum filme recente que tivesse “amor” no título. Querendo saciar minha curiosidade, cheguei-me perto da menina e fui puxando conversa.
- Eles estão realmente inspirados, esses dois. E aí, menina, como está indo a filmagem?
- Ah, tio, é pra um curta-metragem. Pra escola.
Tio!? Vá para o inferno.
- Legal. É sobre o que? Amor, lugares românticos?
- Não. É sobre como as pessoas ficam idiotas quando estão apaixonadas.
A fila começou a andar. Voltei devagar para perto das minhas malas e esfreguei as mãos para espantar um pouco o frio. Prometi a mim mesmo duas coisas: começar a fumar quando voltar pra França e botar na cabeceira do berço da minha futura criança alguns Neruda, só por precaução.
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