Expresso com cachaça

Hoje e sempre, ontem.

Hoje, e sempre ontem.

Hoje é sempre ontem.

Hoje o mundo parou um pouco para mim. Talvez não por mim, mas eu parei ele bem no meio do seu dia. Ele não deve nem ter notado, as pessoas que passavam com gravata ou câmera também não. Elas só queriam trabalhar, turistar, andar. Elas corriam no espaço para vencer o tempo que as instigava. O tempo delas não parou. Sequer piscaram para não perder tempo.

E assim elas continuaram negando. Não perder e não parar são dogmas tão inflamados e incutidos na cabeça dos passantes! Eles perdem por não parar. Há talvez (sempre talvez, a ciência é a mais incerta das religiões) uma relação entre espaço e tempo que se resume, em palavras toscas, a um eixo cartesiano de referência. As quatro dimensões (três espaciais, uma temporal) que medem esse eixo partem de um ponto comum e buscam confortar nossa compreensão humana nos fazendo um cafuné, sorrindo e falando com uma voz afável: "calma, é tudo relativo; só há um porém: ninguém enxergará o mundo no mesmo ritmo que o seu". Estar posicionado em um lugar específico não poderia ser menos específico para a compreensão espacial humana; o tempo de cada um é particular.

Entretanto, hoje eu experimentei a sensação de estar em uma fotografia na qual as pessoas em volta se mexiam, mas só eu vivia. Veja bem, eu não me movimentava. Elas não paravam. Ainda assim, a singularidade do instante se fez presente no ritmo frenético nas minhas veias e na apatia da correria alheia. Pensei, e pensei muito. Falei pouco, pois tive a sorte de dividir esse momento com uma pessoa. Ela pode não ter percebido, mas o tempo dela também parou o nosso mundo. A insanidade dessa freada brusca é muito pessoal, difícil de se materializar fora da mente de quem a vive. Se meu egocentrismo humano não for falso, e eu tiver nascido para contribuir com os meus pares, eu quero que minha herança seja o estímulo para um exercício fundamental para a paz e o engrandecimento do espírito: se habitue a parar e pensar. Dentro de si questione o porquê do que acontece ao seu redor, ou simplesmente admire a beleza da harmonia de quem anda ao seu lado. Aquele chão, aquela menina ou aquela música estão ali para ser pensados. Um ser pensado tem valor, um ser pensante valoriza.

Ah, e o expresso com cachaça? Beba um pequeno gole da cachaça envelhecida, deixe-a formigar na boca e engula. Logo depois, beba um gole do expresso bem quente, com pouco açúcar. A sensação é lenta, como se o seu mundo parasse, e fica melhor ainda se for dividida com alguém.

Até dez minutos

Sempre que ganha voz, o homem
Costuma consumir o homem.
Tantos pares que se consomem
Pra emergir da multidão!

Pois tudo que eles produzem,
Todos eles que se produzem
Com tamanho ímpeto jovem,
É pra ganhar a multidão!

Queremos tanto o talento...
Ainda que eles o provem,
Afundam, fugazes que são.

E é montando o momento
Forjando a voz, que o jovem
Ganha a fugaz emersão.

Reflexão sobre o caminho da ideia

Não há ser pensante e autoconsciente sem um par.

Linguagem é ferramenta entre pares, e só entre pares. Percepção de significância é outra instância, talvez mais universal.

A percepção de significância seria a interpretação similar de um gesto, som ou imagem por dois receptores que não dividem a mesma constituição biológica e bagagem audiovisual/cultural. Dois seres diferentes. A interpretação se daria em processos de comando ou indicação, não permitindo o diálogo direto; ela funciona, como exemplo simplista e claro, na relação de domesticação de animais.

A linguagem, em nível concreto, é baseada no dualismo. Uma ideia só é compreendida qquando sua contraparte é conhecida. Conhecer, no caso, se dá por meio da experiência sensorial, sem capacidade de abstração de valores quantitativos ou qualitativos, apenas a medição por si só.

Em seu nível abstrato, a linguagem perde os parâmetros gerais de comparação. Os valores assumem aspectos de universalidade e imparidade. As contraposições abstratas são, na verdade, nuances de um mesmo conceito. Nossas capacidades sensoriais não agem em nível abstrato, salvo em interpretações errôneas. Transcender a sensação corresponde a aspirar à universalidade.

Talvez seja impossível a um humano compreender plenamente a universalidade. Talvez sejamos indignos. Talvez ela não exista.

Desconfessado

Um grande problema na sua beleza é a agressividade. Veja bem, não estou a falar de sua postura; seu corpo respeita qualquer percepção de perfeição. Sua atitude, aparentemente contida ou simplesmente reservada, também não consegue chegar nem perto de um comportamento alterado. Chega a ser engraçado imaginar algo assim, talvez seria parecido com um filhote de tigre aspirando ser tão terrível quanto sua contraparte adulta.

Então o que me intimida em sua beleza? Mais do que isso, é necessário dizer, ela me causa pavor. As presas expostas, o olhar ferino à espera... Beleza predadora. Sim, é essa sensação de ser caçado que me arrepia e me contrai todos os músculos do corpo - e me estimula. Minha predadora involuntária é agressiva sem nem ao menos esboçar esforço, fazendo minha adrenalina subir com um suspiro apenas. Ela me faz estar sempre em estado de alerta, apreensivo, ansioso. Na verdade, é uma perseguição cansativa; a presa em constante busca por sua cruel caçadora, cena irreal e honesta...

Tudo isso é uma grande besteira. Sou eu tentando canalizar minha frustração e minha covardia em uma imagem que não representa nada. Talvez hoje eu me levante e fale; amanhã eu posso ainda estar reunindo coragem. A única gota de honestidade nesta confissão é o meu pavor.

Contos de almoço

Como era bom o cheiro exalado pelo feijão, feito carinhosamente pela avó! Aquele odor era uma experiência multifacetada, sinestésica, que levava às narinas figuras deliciantes e toques macios representados pelo sabor e o som do feijão. Chegava até a causar uma leve confusão na cabeça fresca e faminta do infante, que brincava distraído na sala da casa com seus blocos de montar. Ele passava a imaginar cenas inteiras baseadas somente naquele cheiro, e como ele era bom! Banquetes medievais a luz de velas e com bardos tocando seus alaúdes, bobos tendo seus ossos quebrados e a corte fazendo o que uma corte fazia... Ou quem sabe, depois de assistir a tantos desenhos na manhã, fosse uma mesa de jantar colonial, em um sítio folclórico no interior do Rio de Janeiro, com uma figura matriarcal, roupas caipiras e muitos animais ao redor da casa. Animais e monstros, o que inevitavelmente incidia em uma refeição nipônica. Alheia aos répteis atômicos e aos alienígenas invasores, a família se serve, em suas cumbucas lindamente pintadas, de algas cruas, peixes crus, vegetais crus e litros de saquê para catalisar a digestão. Tantas cenas passando por sua cabeça deixavam o garoto ainda mais faminto ao se sentar à mesa, e o sinal de ataque dado pela avó o liberava para uma luta injusta e calmamente travada contra o prato de feijão preto. Seu cheiro se espalhava por todo o quintal da casa. As árvores pareciam poder sintetizá-lo e converter em energia para si o que antes era material de construção para mundos imaginários. O menino acabava sempre por dar um cochilo após o almoço; sonhava com dinossauros e cavaleiros.

Fé na corda bamba

Os dedos na ponta de cada pé
Permitem que meu passo saia reto
Equilibrando-me no corpo ereto
Mas os dedos não me resguardam da frustração
E o que empurra o corpo (não fisicamente, mas do lado de dentro)
Ignora aqueles dedos, fazendo-me curvar, perco o centro.

A minha ventura é falha,
Mas brindemos a ela para encorajar:
Boa fortuna à minha ventura,
Que a cura da sorte é andar.

De autoria conjunta de Arthur Rivelo e Rafael Spínola.