O gosto do malte

Com uma cerveja doce
Encanta a minha flauta
Nietzsche, uns macacos
Um bom filme e os convivas.

Com uma cerveja salgada
Eu tempero um samba
Brincando de bamba
Em uma noite quente.

Com uma cerveja azeda
Ignoro conversa fiada
E fecho o rosto, enjoado
Do gosto de solidão.

Com uma cerveja amarga
Sento com velhos companheiros
Ombro a ombro com os parceiros
Celebro o bom do que já foi.

Os abutres

Foi quando olhei para o alto
Que notei, moribundo
A Fome descendo em espiral do céu.
Deitara por dor
Ou cansaço
Não importa.
Olhava para cima, porque então
Não mais reagia ao chão.
"Os pontos, o que serão?"

Havia naquelas tantas asas
Uma morbidez digna.
Não sabia ainda
Talvez nunca venha a saber
Uma resposta
Para sua vinda.
Infrutífera questão
Eu perguntava em vão.
"Quando esses carniceiros virão?"

A Natureza descia em mim
E o punhado de terra
Que insistia em sustentar meu parco corpo
É quem mostrou
Quanta frieza
E quanta beleza
Eu teria em me deixar.
Espreguicei-me no conforto da areia,
O roto começou a puir.
Não me importa quem serão...
Ignoro saber quando virão...
"Venham agora, e me abracem como a um irmão!"

Umas frases de desencontro

Espero cada minuto, cada
Segundo, cada instante

Olho para o relógio, mas
Ele teima em ficar parado

Procuro o que fazer,
Mas não há nada importante

Nada que consiga me
Manter ocupado

Nada que consiga ser
Tão constante

Quanto o desejo
De estar ao seu lado

- ----- -

Você destrói o meu
Discernimento

Me sacia através
De sofrimento

O tempo voa
Preguiçoso, lento

Até o momento
Em que sai em disparada

Você, próxima
Misteriosa e calada

Me olha e me mata
Sem dizer nada

Ironicamente
Com a vida acabada

Me sinto mais vivo
E você é a culpada

Pois é o veneno
Que mais me agrada

Debaixo da arrebentação

Aquele homem possuía fortes lembranças de uma certa ponte da cidade. Frequentara quando criança, usando-a de trampolim para mergulhar em um infinito salgado e se deixar levar pela maré. A ponte que abrigava barcos, a que sustentava carros, que equilibrava pedestres. Passarela branca sobre a entrada de uma área protegida perto do porto. Ele a cruzava nos dias de chuva, sempre olhando para o mar que lhe banhava os pés, nunca sabia se da ponte ou dele. Sob sol de verão, não importava. O corpo buscava mergulhar até a base da sustentação, parecia ser uma provação chegar tão fundo só para mostrar ser capaz! E ele era. Seus pulmões doíam enquanto apenas um punhado de raios solares iluminava os pés daquela apoteose submersa, invisível a olhos distraídos.

Passaram-se anos e o homem se distanciou. Era homem do continente agora, insensível à maresia quase sólida daquele antigo recanto. Ele era homem telúrico: desaprendeu a nadar. Nem chegou a reparar quando isso aconteceu. Também ignorou quando suas narinas desacostumaram ao cheiro constante do sal, assim como a pele foi se tornando seca. Vivia sobre o chão que equilibrava prédios, sustentava avenidas e abrigava poluição. Havia carros, pessoas também, mas sempre retilíneos, enfileirados. O homem sentia falta de algo, mas não sabia exatamente o que.

Constantemente em ofício; O homem era ocupação. Quanto mais se ocupava, mais oportunidades de se sobrecarregar ele tinha. E ele o fazia. Cada vez mais, cada onda de trabalhos arrebentava, exercícios espumavam sobre si, suas leituras corriam para os lados e se derramavam sobre o vazio de uma cama dura e mal iluminada. Apenas o sexo não tinha ritmo. O homem precisava escapar da sua vida e não sabia para onde correr. Sempre escorregava quando começava seus passos.

Fugir era inútil, então ele se entregou.

Apenas deitou e deixou que a maré o levasse um pouco. Lembrou, alegre, daquelas marolas que lhe entregavam aos braços da ponte branca. A imagem não durou muito à sua volta, logo alguém veio lhe trazer à tona. Disseram-lhe que a vida seguia e que era preciso viver para acompanhá-la de perto. O homem mergulhou de novo, várias vezes mais ele tentou se desvencilhar das mãos que o traziam para a superfície, mas sempre havia dedos para agarrar-lhe a gola e impedir que se afogasse. A frustração foi crescendo por dentro, doendo como um pulmão privado de ar. E o ar nunca vinha, apenas goles de água. A respiração rítmica deu lugar a soluços em leve desespero, logo os soluços eram pranto e as lágrimas inundavam o quarto; paredes claustrofóbicas, a água escorria por elas e pelo chão ficava.

Chega um momento em que o ar acaba. Pois nesse momento, a solução do homem foi se afogar.

Imolação

Ela me queima! Essa que perfura
Todo meu frio, essa inverdade:
Você amou! Loucura, é loucura...
Mas a mentira inventa saudades.

Minha lembrança da temperatura
Ainda arde como aquela tarde
De um verão do passado sem cura.
Sem um começo, a cena me arde.

Essa lembrança quente nunca finda,
Nunca irá. Serei cego, ainda
Que a verdade passe com alarde.

À luz do fogo, sei ser incapaz
De qualquer dia alcançar a paz,
Por pura perda irreal que arde.

Nutrir meu pesadelo

Olhos fechando no mundo.
A sensação de perigo
Que me congela o umbigo
Teme o sono profundo.

Sinto teu peso nas costas.
Só, estou preso contigo,
Fardo obeso em abrigo
Sob o que rezo; tu gostas.

Queres que logo me deite,
Sentes a sede, as feras,
Vezes nem mesmo esperas

Para sorver em deleite,
Enquanto meu lobo fores,
As gotas dos meus temores.

Um dia

Vi a vida; ela ria
Da gestão de um novo feto -
Humano, fraco e quieto -
E do destino da cria.

Perguntei-a se havia
Graça em nossa mazela,
Pois a vida ria dela.
Dela mesma ela ria!

"A dádiva e a mazela
São a mesma" disse ela,
"É certo, morre e procria

Para completar seu elo!"
Com um sorriso amarelo
Também ri da ironia.

Alvorada e infância

Sinal fechado. Esquina iluminada, um oásis gélido naquele deserto em breu. Ela caminha a passos lentos na sarjeta, e a sarjeta responde com sons de batidas ocas a cada golpe dos saltos altos e extravagantes. Eles são dourados. Suas alças cobrem uma meia-calça escura, que sobe até se fundir com a saia curta e preta. Casaco felpudo e preto, camisa curta e preta, apenas aqueles saltos brilham na penumbra afastada da luz do poste. E o sorriso de repente se abre, brilha junto dos saltos, em reposta à oportunidade: o carro parado no sinal não anda quando a luz verde acende.

Quebrando o silêncio, o vidro escuro do carro desce para revelar um homem jovem que oferece calor em seu sorriso. Ele parece polidamente convidá-la com os olhos. A mulher, alheia à sutileza do flerte, anda até a janela aberta e se oferece. Aparece um certo desgosto nos olhos do jovem, mas as palavras que surpreendem o sorriso agora quebrantado são ainda mais quentes e firmes:

- Me fale o seu nome.

Ela se surpreende com o pedido, julgando desnecessária tal intimidade assim, tão direta. Pondera sobre ser seguro dizer seu nome verdadeiro, mas na falta de argumentos, ela se deixa levar pelo conforto na voz dele.

- Clara, querido, ao seu dispor - o garoto não responde, se limitando a olhar demoradamente o rosto dela. O silêncio dura alguns segundos desconfortáveis, até que a mulher o espanta com certa impaciência - Então, vai querer levar, mocinho?

Ele aparenta ser alguns anos mais novo que ela. Sua juventude, apesar disso, transparece uma austeridade incomum. Rosto sério, modos educados e um calor que emana do sorriso. Abrindo por dentro a porta do carona, com um convite sem palavras ele recebe de bom grado a companhia vistosa no assento vizinho. A mulher se ajeita sobre o banco e ri quando ele oferece ajuda, achando engraçado todo aquele galanteio. Ele sorri para ela mais uma vez e acelera o carro para dentro da noite.

Amplas ilhas de luz fraca são fornecidas pelos postes que rasgam a paisagem, permitindo um conhecimento parco entre os dois. Ele fixa sua atenção ora nas mãos brancas, ora no perfil da estranha, as únicas partes expostas de seu corpo naquela noite fria. Ela demora seu olhar sobre o jovem quando ele não a encara. Como aqueles olhos são penetrantes, pensa. Ela prefere observar discretamente. Nota poucas peculiaridades nele, além de uma beleza oprimida por ares de solidão, até chegarem em um prédio residencial no centro da cidade.

O carro é parado em uma vaga e o rapaz se apressa em abrir a porta para a mulher, que agradece com um sorriso e se levanta roçando seu corpo no dele. Os pelos arrepiados no braço o deixam embaraçado, e ela aproveita para provocá-lo ainda mais correndo a mão sobre seu peito. O jovem, a despeito de qualquer nervosismo, afasta os cabelos dela com seus dedos em um gesto de afeto. Agora os rostos estão perto, e ele galga centímetros lentamente. O primeiro beijo atrasa o tempo e arrasta um silêncio de deleite enquanto suas mãos a prendem delicadamente perto de si, e ela pensa novamente o quanto aqueles olhos são penetrantes mesmo quando estão fechados. A mulher, sentindo os músculos dele contraídos, apoia o rosto na bochecha do rapaz e sussurra em seu ouvido:

- Agora eu entendi, garoto. Você é virgem... Mas a gente resolve isso, sou uma boa professora.

- Não, não é isso.

- Não precisa mentir para mim. - ela abaixa mais ainda a voz e cola os lábios no ouvido dele. - Vamos fazer o seguinte: essa é por minha conta, mas só porque eu te achei uma gracinha, garoto. - e voltando ao tom normal - Vamos logo, estou ficando ansiosa.

Ele a guia até um elevador, afagando seus cabelos durante a curta subida, e a puxa pela mão até uma porta de madeira envernizada e pesada que traz aconchego a um prédio aparentemente moderno e frio. Assim como aqueles olhos, pensa a mulher, sem conseguir afastar da mente a íris que parecia despi-la muito devagar, talvez com um pudor até infantil. Ela se deixa entrar, absorta na visão da sala com um mínimo de móveis confortáveis, e fica surpresa ao perceber o jovem aparecer logo com taças de vinho e um convite sorridente e tímido para se sentar no sofá. A mulher se ajeita sobre almofadas e ri quando ele lhe entrega uma taça. Agora ela não mais consegue fazer seus jogos vulgares, sendo conquistada pelo ambiente caseiro que apenas tem sua intimidade aumentada quando o rapaz se senta ao seu lado e volta a afagar seus cabelos. Sem poder reagir, nem que realmente o quisesse, ela deita sua cabeça sobre o ombro dele e fecha os olhos por longos minutos.

Longos e sublimes.

Agora tudo corre naturalmente, os beijos mostram aos lábios o caminho até pescoços e ombros. Com os pelos na nuca eriçados e os olhos ainda fechados, ela o visualiza à sua frente tirando seu casaco e blusa. Ela agora tem medo de abrir os olhos, abri-los poderia fazer toda aquela cena desaparecer da sua mente. Um desejo ardente de tatuar aquele momento na sua vida toma conta de sua lucidez; lucidez essa que se esvai quando ele termina de despi-la e a esquenta com seu próprio corpo agora também nu. Amor. Ela não pensa em mais nada. E sabe que ele seria incapaz de fazer-lhe mal.

Agora a alvorada arde levemente nos olhos dela. O sol ainda está parcialmente escondido, mas os primeiros fachos mornos a acordam suavemente. Sentindo uma felicidade profunda, ela busca se situar, e descobre estar envolvida nos braços do rapaz dentro de um quarto, sobre a cama mais aconchegante em que já se deitara. Havia deitado em muitas. Essa lembrança amarga a traz a um estado de remorso, e ela se culpa por seu passado perante uma criatura tão pura e que fora tão sincera. Culpada pelo destino imposto, pensa, mas que ironia.

- Bom dia, Clara...

A voz rouca é sussurrada em seu ouvido com enorme afetividade. Ainda assim, a culpa cresce. Se dilata por dentro. Ela precisa se desculpar, pedir perdão, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua sensação. Ele nunca entenderia! O que fazer então? Custa a acreditar na resposta que soa baixinho dentro de si, mas afinal se sente decidida, sabendo ser essa a única solução que a deixaria em paz consigo mesma.

Quando abre os olhos, procurando aquela que há alguns minutos estivera sob seus braços, ele a vê vestida e em pé, ao lado da cama. Ela o está observando, parece já estar assim por um bom tempo, e seus olhos estão vermelhos. Parece murmurar um pedido de desculpas antes de desviar seu olhar para o chão. Ele corre para abraça-la ainda nu, preocupado. O silêncio explica a ânsia que se afunda no estômago dela. Nunca antes percebera tamanha magnitude em uma sensação alheia. Quer dizer isso para ela, mas seria completamente incapaz de pôr em palavras sua compreensão. A mulher o envolve em seus braços, espantando-lhe o frio que corre pelo quarto. Eles apenas se abraçam em silêncio por longos minutos.

Então ela sai correndo. Deixa-o estarrecido ao lado da cama, em toda a sua nudez, e corre rapidamente até a varanda. Atravessa o vidro que a prende na sala, há cortes por todo o seu corpo. Os estilhaços voam ao seu redor, voam pela sacada e a acompanham até a queda livre. Finalmente, livre. Mesmo tendo de abdicar daquele que lhe ensinará a sentir...

Desfazendo-se dessas últimas imagens na sua cabeça, ela se levanta.

Da melhor maneira que consegue, ela explica que se sente terrivelmente culpada por seu passado. Se sente suja. Sua vida nunca lhe dera outra chance e ela fez o que tinha de ser feito, mas agora estava arrependida. Cada lembrança contada é acompanhada por uma lágrima sua e um olhar quieto dele. Desabafa as agressões, as perversões e os limites ultrapassados para que pudesse se manter durante anos, sem ser capaz de buscar outra solução. A mulher, reduzida ali diante do jovem, volta a se sentir uma criança que procura outra para acompanhá-la: quer se sentir pura novamente, talvez apenas brincar e depois dormir, acordar mais tarde e ainda ser uma criança. Ele entende e lhe abraça o colo, ainda sentado na lateral da cama. Acolhido por ela, ele entende.

- Não quero nada de você.

De maneira tortuosa, cada um compreende seus desejos. Nenhum som, nenhum barulho naquele quarto agora iluminado amplamente pela alvorada afeta a conversa silenciosa que ocorre entre os olhos penetrantes e a alma infantil. Os amantes brincam e depois dormem. Mais tarde naquele dia, eles irão acordar ansiosos e descobrirão que ainda são crianças.

Em espera

Bom, infelizmente meu tempo é curto
E nao sei se caracteres em uma tela
Terão paixão ao aparecer pra você.

Você é um tipo de Romeu virtual...
E quero que continue sendo, enquanto essa for nossa realidade possível.
Até a minha tela poder ser seu rosto de novo e a sua o meu...


Dragão Filosófico

Racional

A umidade nas folhas mostrava o calor que a estava atormentando, perdida em uma clareira entre tantas árvores altas e folhas mortas caídas no chão. Formavam um belo tapete, mas ela não podia afastar do pensamento o fato de que também formavam um túmulo adequado para acolher sua cria. Sabia ser isso parte da vida, pois a natureza não lhe negava nada e nem permitia ter seu desejo negado. Seu filho se estendia ainda morno sobre o forro bucólico; sua boca estava seca de tentar acordá-lo em vão. Após tantas tentativas frustradas, ela desistiu e se deitou ao seu lado. Não estava propriamente inconsolável, mas bem ciente da tristeza que cobria aquela cena.

A cena não poderia ser mais banal: cada criatura capaz de fazer barulho por entre as folhas o fazia, cacofonia inabalável e intermitente. O som entrecortado de pios e arrulhos e guinchos e lamúrios de seres famintos ou libidinosos compunha uma sinfonia de tamanha variação rítmica que seria quase insuportável para ouvidos destreinados. Os próprios ouvidos da mãe, antes abaixados por respeito ao seu filho, saíram de um silêncio interno para se atordoarem com o espantoso volume que se sucedia ao seu redor. Esses mesmos ouvidos a levaram para onde estava agora, quando um estampido violento assustou aves para fora de seus ninhos momentos antes. O tempo ocorrido entre o curto estouro e a corrida até a clareira pareceu uma eternidade, até mesmo para ela, que pouco entendia de tempo. A revoada ainda se agitava no céu no momento em que ela deitou seus olhos no espaço aberto da mata, verde maculado por um filete vermelho que corria entre algumas folhas mortas. O líquido morno dava vida àquela matéria orgânica depositada caprichosamente no solo. O calor ainda atormentava a cabeça dela.

Foi quando uma outra fonte de calor chamou sua atenção para um lado próximo da clareira. Na verdade, havia toda uma trilha quente que ligava o corpo estendido no chão a um filete de fumaça que vinha da mata. A trilha era acompanhada de um forte cheiro amargo, estranho ao ambiente. A mãe não compreendia o que se passava, mas instintivamente entendeu o que viria a seguir. Eriçou suas orelhas e apurou seu faro, mas era tarde demais, sabia que não seria capaz de reagir. Apenas tentou cercar seu filho, protegê-lo do que quer que viesse tentar se aproveitar de seu corpo inerte. Ela se recusaria a partir vendo sua cria sofrer.

O estampido foi de uma rapidez piedosa. O calor e o susto a fizeram se sentir desconfortável a princípio, mas a mãe se esforçou para parecer calma diante dos olhos vazios de seu filho. Deitou-se ao seu lado a tempo de ver uma criatura estranha e alta vir em sua direção através da vegetação. Fechou os olhos e deixou vir a escuridão. Ou a luz.

---+*+----+*+---

O homem estava deliciado com o resultado. Como era sortudo! E também inteligente, é claro... Sua astúcia lhe rendera uma ótima caça. Não acreditava como esses animais eram estúpidos. Bastou acertar o filhote e vejam só, ponto a favor do mais evoluído... Após esbravejar suas comemorações para a mata a atirar uma vez mais de forma a afastar aquelas malditas aves barulhentas, recolheu seu prêmio e voltou para casa pensando na melhor maneira de contar seu feito para os amigos.

Alegoria da minha paz

Primeiro foi a tevê. A sala ali, estática, agindo como se não se importasse. E lá foi o aparelho, seguido pelo rádio e seus arrojados alto-falantes  Carlos estava sentado no sofá, e agora não havia mais sofá. Ele olhou a cena distante, logo ali do seu lado, mesmo assim distante, e perdeu sua noção de espaço junto com a mesa de centro, que levou com ela os controles e a decoração de cactos artificiais. As paredes entraram na contradança, e de repente Carlos viu que tudo ao seu redor estava em um baile estranho. Concentrou-se um pouco e observou o horizonte, vendo o asfalto e as árvores serem suspensos no ar. Cada prédio, cada pedestre estava sumindo no ar. Logo não havia mais ar.

Depois foram as certezas. Saíram em disparada de sua cabeça aquelas ideias que acostumaram Carlos a ficar acostumado a elas. Perderam-se na fuga o preconceito, o racismo, a fé e a moral. Estavam entre essas ideias mais outras, muitas outras, mas se perderam. Os rostos dos conhecidos e as figuras que lhe disseram ser necessário conhecer; tantas pessoas enchiam sua memória e em meio a um caos controlado elas simplesmente saíram. Levaram consigo toda arte, guardaram nos bolsos o que acharam de ciência. A filosofia, rabugenta embora sociável, ficou. Não sobrou mais nada, cada gota ou grão de lembrança debandou de Carlos e o deixou sem saber ao menos quem era ou se alguém era.

Embalado por uma certa agonia, Carlos tentou em vão ficar cônscio daquilo que se passava, mas não havia mais consciência - ele estava reduzido a si.

E seu pensamento.

Primeiro veio o pensamento. Não partira de verdade, apenas estava mais vívido agora. Livre de tudo o que fosse, solto do mundo, Carlos era. Ele era algo em construção. Cada peça que antes compunha Carlos estava ausente, mas ainda assim ele era algo.

Carlos era. Justificando-se por uma lógica irrefutável, compreendeu ser seu saber fruto e prova de sua existência antes de qualquer outro pressuposto. Era necessário um ente para que houvesse o saber.

Carlos era um. Apenas uma voz se pronunciava em sua mente. Podia ser confortável tentar apoiar sua lucidez em outras existências, mas sua individualidade lhe garantia tanto a liberdade de ser quanto a responsabilidade de sê-lo.

Carlos era um homem. Um punhado de impulsos elétricos percorrendo a massa anamórfica de células. Uma mente. Um ponto sem espaço nem tempo, um vácuo no qual residia seu eu. Ele então compreendeu sua humanidade - ser alguém em lugar ou instante algum, e ainda assim se fazer presente no seu devido local e momento.

Depois veio a calma. Toda a energia morna acumulada naquele momento de ignorância, espanto e reconhecimento explodiu em uma serenidade reluzente. O calor percorreu átomo por átomo dos seus membros e descansou na ponta de seus dedos. Carlos foi tomado por uma sensação perene e isso o deixou feliz. Sequer havia resolvido qualquer que fosse a questão, mas sorria ao perceber-se capaz de questionar. Talvez a vida se tratasse disso. Carlos não mais se importava, não se importava com resoluções ou propostas, compreendendo ser seu rumo apenas o caminho.

Sobre uma certa viagem

12:06
As obrigações para com o mundo colocavam um Rapaz neste exato lugar, nesta exata hora.O banco do ônibus era o último lugar no universo que ele gostaria de estar agora. A coletividade tornava-o incapaz, a mercê de quem viesse e se servisse do espaço em anexo. Achava realmente desconfortável estar assim tão próximo de algum possível contato aberto com a humanidade, em toda a sua amplitude, mas até agora o cosmos conspirou a seu favor: o território conquistado ainda se encontrava imaculado.

12:17
Seu constrangimento era evidente; fones de ouvido, mochila no colo e um olhar fugidio eram suas muralhas. Até agora ninguém havia ousado quebrar o silêncio imposto, nenhuma senhora sedenta por frivolidades ou trabalhor disposto a resolver as desigualdades do mundo com conversas politizadas. Tudo corria bem, dentro do possível. E dentro daquele ônibus saculejante.

12:21
A porta traseira abre, pessoas são empurradas e um profeta de coletivos assume posição de combate diante da catraca - ele era a perfeita figura de um algoz. A paz até então reinante ruiu.

12:24
Palavras desconexas, relatos de uma vida sofrida (e recorrente entre esses profetas; eles podiam até ter retórica, mas nem um pouco de imaginação), panfleto com mensagens genéricas e um pedido por trocados, em troca de paz de espírito e Jesus. O Rapaz engatilhou sua melhor expressão estóica e lutou como pôde. Queria apenas que aquela provação acaba-se. Talvez até passar uma lição para o torturador profeta: "Você acha mesmo que Jesus foi o semideus templário e ariano que você fica caricaturando? Pare de assistir televisão e vá ler um livro...".

12:25
Quando achava que toda a emoção da viagem havia terminado, o Rapaz de repente sente seus olhos atraídos de volta à catraca. Não esperava encontrar logo ali alguém que despertasse seus sentidos assim tão abruptamente. Conseguiu se manter aparentemente calmo, mesmo ficando arrepiado. Uma mulher que o deixasse assim, arrepiado, era algo raro. Era uma beleza rara, dessas que não se encontra em um ônibus. O Rapaz ficou sem ação.

12:25:47
Ela finalmente segue pelo corredor, buscando um lugar. Ele tenta, sem confiança, fixar seus olhos nas correspondentes esmeraldas da mulher. Naquele instante reconhece o valor de uma pedra preciosa: a sua raridade. Entende porque homens mataram e escravizaram por causa de um mineral tolo. Eles sabiam que essa simples pedra escondia uma mulher como aquela dentro de si! Agora era a mulher quem possuía a pedra em si, mas não a escondia. Exibia-a com orgulho e naturalidade.

12:25:55
Cada pelo do corpo do Rapaz tenta se lançar ao ar, buscando o infinito longe deste exato lugar, desta exata hora. Querem escapar do que temem acontecer quando a mulher finalmente se sentar ao lado dele. Ela está tão próxima!

12:26:55'15
Passa em sua cabeça, em sequência, cada figura feminina que registrara em sua vida. Nunca houve tamanha beleza, nem magnetismo... Se sentia atraído por ela como um imã tolo e poderoso demais para seu próprio bem.

12:26:56'15
Ela se senta. Ele não sabe o que fazer, nem se deve fazer algo, na verdade. Apenas sorri.

12:27:02'00
"Aceita uma bala?"

12:27:04
Ela aceita e sorri de volta.

13:06
Seu ponto passou havia 15 minutos, mas ele não se importava. Cada minuto da conversa valeu a pena, e o número de telefone anotado na sua mão simplesmente o fazia esquecer de todas as outras obrigações para com o mundo - quem se importava? Quem merecia a sua atenção agora era aquela com quem ele esperava descobrir a beleza da humanidade. Enquanto isso, o ônibus segue saculejante por seu caminho cíclico, sem fim. Os profetas de coletivo, os trabalhadores e as senhoras decoram a viagem e todos os possíveis futuros que irão descer dela.

Passagem

Era certo haver naquela tarde um clima mais pesado que o usual. Não queria sair perguntando ao vento o que estava errado, tampouco queria ouvir a resposta. Decerto o vento era presença mais agradável que qualquer um, era um ótimo ouvinte e companheiro. O Rapaz estava irritado era com as pessoas. Cada palavra cuspida ultimamente por elas estava tornando sua vida uma progressiva tortura. Sequer sabiam elas seu nome, talvez nem notavam sua presença ao redor. Elas só viam o que lhes convinha no mundo, e se não precisavam dele, simplesmente o ignoravam.

Com esses pensamentos no bolso, o Rapaz andava por um dos corredores frios de sua faculdade. O chão de pedra apenas tornava mais gélida a via crucis até sua sala de aula. Compenetrado em sua procissão, esbarrou distraído em um velho que cambaleava no sentido contrário. O Rapaz parou para se desculpar, notando que o idoso balbuciava algo para si, com olhos vazios e atônitos, e essa cena deixou-o intrigado. Se sentindo desconfortável, botou uma mão no ombro do homem e perguntou:

- Está tudo bem com o senhor?

Como se ele acordasse de um transe ou um sonho, voltou seus olhos lentamente para o Rapaz. Abriu um infantil, porém deprimido sorriso e, com uma voz experiente e cansada, respondeu:

- Ah! Não tinha te visto... Está tudo como deve ser, a vida é a gente quem faz, não é?

- Se você diz...

- Não! Não sou eu quem diz, é a própria vida. Meu jovem, eu que lhe pergunto, tudo bem com você?

Em qualquer outro momento, esse questionamento enfadonho faria o Rapaz se deleitar ao imaginar um enorme buraco negro sugando a senil aparição. Mas havia na voz dele um tom agradável, impedindo que a atenção fosse desviada. O estudante se viu impelido a responder sinceramente àquela criatura triste e frágil. Suspirando, falou:

- Eu estou ótimo... As pessoas é que parecem não estar bem comigo por perto. Também não posso reclamar por me desejarem mal, apenas acho que elas simplesmente não desejam, não me sentem nem me percebem.

- Meu caro, acredite: sei precisamente como se sente! Melhor que ninguém, posso lhe dizer que você está enganado. Se incomoda de se sentar um pouco comigo? Como vê, estou velho e cansado, não se deve deixar um velho falante em pé - ele tende a falar mais e mais. Vamos, sente-se aqui.

O banco indicado se encontrava em uma parte aberta do corredor, por onde o sol entrava e trazia um pouco de luz e calor ao ambiente recluso. O Rapaz se sentou distraído ao lado do velho, enquanto esse se ajeitava devagar sobre o assento. Paciente com a inesperada nova companhia, ele ajudou-o e cruzou as pernas, observando o movimento de pessoas à sua volta. Elas cruzavam pela sua frente sem aparentemente notar a cena pitoresca; parecia ao Rapaz que apenas ele tinha consciência da presença do velho ali ao seu lado, presença essa tão incomum. O velho parecia também acompanhar o andar dos passantes, e por fim disse:

- Cada passo para eles é tão curto! Sinto que deixei de dar apenas passos há décadas! Hoje sei que cada metro avante é uma odisseia para meu corpo. Isso o torna um herói, não é? - ele deu uma risada sarcástica, parou por um momento e prosseguiu - São esses os causadores da sua aflição?

- Estou sempre cercado por eles - o Rapaz sorriu irônico, mas com certo desamparo - O mais engraçado nisso tudo é que eles todos convivem muito bem entre si, e só eu pareço me sentir sozinho.

- Diabos, vocês crianças sempre se julgam diferentes. O que vocês sabem? Ouça bem e talvez você aprenda: quem lhe segrega é você mesmo. O quanto eu custei para aprender isso! Hoje estou muito bem resolvido com isso.

- Você aparenta ser tão solitário. Duvido que seja assim tão bem sucedido, senhor...? Err... Como é mesmo o seu nome?

- Em nenhum momento eu mencionei sucesso. Nem meu nome. Seja mais perspicaz! Os anos se avolumam sobre minha costas, e para cada vela no meu bolo há uma grande decepção. Vivi na espera de um grande amor, uma forte amizade, esperei tanto! O que eu quero lhe dizer é... É que você não pode ficar simplesmente culpando os outros, sabe? Levante-se e faça você essa amizade ou amor, é o que digo, levante-se e fale! Quem me dera eu tivesse alguém falando isso para mim na juventude...

- O senhor está abalado, acalme-se um pouco - realmente havia uma lágrima no rosto enrugado do velho, uma gota de lástima ou de ímpeto - Se servir de consolo, foi um prazer lhe conhecer. Sério. O senhor é um homem muito inteligente, lhe falo honestamente.

- Muito obrigado, meu jovem, você está sendo generoso - o idoso desolado deixou escapar um sorriso de satisfação.

- Deixa disso, suas palavras foram realmente esclarecedoras!

O Rapaz pousou confortavelmente sua mão sobre o ombro do velho entristecido, que deitou um olhar profundo em seus olhos e depois se voltou para o chão. Aquele chão de pedra era impiedoso, frio e implacável. A figura senil parecia reunir forças para quebrar o silêncio que se seguia, esfregando as mãos nos joelhos. Enfim se levantou, mais calmo, acompanhado do Rapaz. Sorriu uma despedida tímida e começou a se dirigir sozinho para as escadas na saída do corredor escuro, dizendo sem se virar:

- Guarde bem minhas palavras.

O Rapaz acompanhou atônito a odisseia do velho rumo às escadas por alguns instantes. Quando o idoso estava a apenas um metro do primeiro degrau, o estudante de repente se agitou e gritou:

- Espere! Você não me disse seu nome...

- Sim, é verdade... - o homem, virando a cabeça de lado, sorriu pelo canto da boca - Meu nome é Ostracismo. Talvez um dia você esqueça meu nome, talvez esqueça que me conheceu. Tanto melhor. Adeus!

O Rapaz se manteve atônito na mesma posição, enquanto via sua recente companhia sumir nos lances das escadas, passando fluidamente por entre as pessoas apressadas que subiam e desciam ao seu redor. Apesar de tão pitoresca figura, ninguém parecia notar sua presença.

Terra bailarina

O vento na face, quem faz não é tão
Concreto ou tangível, não posso tocar
Mas há uma presença secreta no ar
Vivendo escondida no giro do chão

Tamanha é a força de tal rotação
Que prende meus pés, me impede o voar
Quem voa inerte no vácuo é meu lar
Por entre o silêncio e a escuridão

Escuro é o palco que a bailarina
Se lança, na dança, com passo imortal
Em cada compasso, ballet é sua sina

Menina dos olhos de seu morador
Eu sinto o vento e sei, não há mal
Apenas os passos, o céu, seu calor

Prólogo ao voo

Pássaros, bicos sobem
Ao céu em paz

Ícaro, cera e pena
O Sol na tez

Zéfiro, sob a nuvem
Voo em viés

Fátuo, fogo ou cena
De luz fugaz

Haverá um porém

Meu bem, esta carta é para que você saiba que tudo correu bem até agora. Não há motivos para se preocupar com meu bem estar. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, creio que isso vem com o tempo. Engraçado... O tempo aqui corre de maneira diferente, na verdade: ele caminha usando um passo lento, senil. Realmente, isso causa desconforto a princípio, considerando que eu sempre fazia da minha vida uma vertiginosa corrida. O irônico é ter chegado ao fim em primeiro, vencedor, e descobrir que o imbecil ganhador recebe o prêmio das mãos da própria Morte.

Mas deixemos disso, quero saber notícias de você e das crianças. Saiba que pensei muito em você, naquele derradeiro momento, e também em nossas filhas. São meninas, não são? Eu peço desculpas, minha memória puiu, se desgastou tristemente desde então. Pelo que percebi, não me foi possível mantê-la imaculada, visto que nem mesmo seu nome me vem à cabeça. Nem me recordo com confiança do que havia antes... O que há comigo? Tenho de me lembrar...

A angústia me corrói! Apenas aquela última sensação, ao me apoiar no parapeito, ficou gravada na minha mente, como a marca de Caim. Eu pensava em vocês... E me foi sentenciado esquecê-las, assim como tudo o que amei, para assim sempre me lembrar de que um dia amei, embora não mais haja espaço para se constituir outra coisa na qual eu possa apoiar meu eu. Havia você, havia as crianças e o mundo; agora inexiste para mim algo que interaja, estou preso à minha essência e à sua companheira, a solidão. Preciso que desse vazio me apareça um fio de esperança para agarrar, sua resposta a essa carta seria minha redenção.

Espero tal resposta ansiosamente. Ainda conservo um propósito: busco essa paz comigo mesmo para compensar a culpa que agora experimento. O voo que me trouxe aqui, confesso arrependido, foi o êxtase máximo daquele que vivia ao seu lado. Mas quero me livrar do desamparo que pesa nas costas; ele pesa só de imaginar que deixei alguém no mesmo desamparo! Em meio ao nada eu rogo para que haja uma maneira de me desculpar, de lhe dizer tudo isso. Porém, tudo fica mais difícil quando não se sabe com quem se fala.

Tentarei então traçar a minha despedida do mundo. Quem sabe assim eu não consigo refazer meus passos e achar a ponta solta dessa corda? Havia na cena uma janela, certamente. O lugar... Agora sim, me chegam as imagens. O lugar era o apartamento de minha avó, um sétimo andar de vista linda! Como eu adorava observar por aquela janela as redondezas, sempre imaginando poder voar livremente através dela. Sim, a sensação fugaz de vertigem sempre me seduzia... Até que um dia decidi prová-la por completo. Serei digno de reprovação por ter buscado um toque verdadeiro de vida? Nunca alguém terá tamanha certeza de que se existe de fato! Confesso, o preço é a existência em si. Porém neste momento experimento, acima do desamparo, a recompensa por ter me descoberto em mim.

Não me julgue egoísta, meu bem, nenhuma justiça seria adequada a essa situação. Encontrei meu propósito: estou em paz comigo mesmo. E assim que receber essa carta, saiba que corre tudo bem por agora. Ainda irei me adaptar a essa nova realidade, mas creio que isso vem com o tempo.

Eternamente seu,
Aliquem

Inocência

Fiz umas flores no papel...
Ao terminar senti-me um tolo
Boba culpa, ingênuo dolo
Do sutil crime infantil

Fiz no pão desenhos de mel...
Tão doce o dourado miolo!
Um novo ato falho e tolo
Me puniu com culpa senil

O juízo que é imposto
Tolo, quem ouve e nada diz!
Merece jamais ser criança

Sou fiel àquilo que gosto
Tolo, admito, mas feliz!
Eu vivo a honesta bonança

Um silêncio

Um silêncio vale mais que a palavra; o que é dito é absoluto, enquanto eu me calo e deixo que cada sílaba fale por si, e cada ouvido ouça o que quiser. Essas que estão aqui são apenas palavras vãs. É mister que haja sempre esclarecimento sem ordem e, acima disso, sem influência.

Entendam o que quiser, quero somente falar. Ironicamente, encontro meu conforto naquelas que tento rejeitar. Pois é, essas malditas palavras são meu ópio, serão minha ruína e enfim minha redenção.

Eu caminho consciente para o precipício que beira um delírio, um mar de fantasia. Essas palavras são de um louco, são malditas! Espero ingênuo por uma mão que me segure antes do derradeiro passo, porque meu medo me impede de parar.

São apenas palavras silenciosas de um louco.

Fio de lã

Ovelha ao lado de ovelha
Pronta para outro comando
Pastando na rua, pensando
Com pressa, ficando mais velha

A cada passo, outra passa
Por onde passaram primeiro
Mais pés, mais patas do inteiro
Rebanho no pasto da massa

Pois eu e a massa somos um
Anônimo, somos nenhum
Acima de mim, sou vocês

E eis que eu posso ser dois
Ainda ser eu, e depois
Ser, sim, alguém entre nós três

Autor de si

O quadro emanava cores e formas astrais, acariciando o ego de seu autor. O Pintor dava apenas retoques finais, sabendo ser sua obra quase finita sobre o cavalete. E que obra! Ela elevava a arte a um nível sublime, inflando no observador todas as sensações capazes de serem estimuladas pelo belo. E que belo! O Pintor queria mostrá-la para todos, sair de seu apartamento para a rua, exibindo seu troféu de satisfação!

Mas aí ele para. Há algo errado com seu quadro. Olhando com cuidado, o Pintor percebe uma aparência um tanto cabisbaixa nele. O que havia de errado?

- Não sei, tenho me questionado... Bem, sobre esses paradigmas de sentido da vida e seus propósitos. Tu, Pintor, já te perguntaste por quê?

- Hã?

- Nunca foste curioso com sua existência? Na minha condição de obra, me aflige não compreender por quê eu sou quem sou. Tu, criador, és capaz de me sanar as dúvidas que te exponho? Realmente necessito ouvir isso de ti.

- Mas eu não fiz você com um objetivo, sabe. Eu simplesmente te fiz, sem esperar nada disso.

- Isso soa muito fútil, é impossível minha criação ter sido baseada num ato espontâneo de um homem! Seria destroçar minhas expectativas; e tu ainda por cima defenestras meu ego pela janela desse apartamento, agora tão insensível e sem alma. Não tens compaixão, ou não és sábio como eu esperava...

O Pintor se sensibilizou com o lírico desconsolo do jovem quadro, mas que podia fazer? A arte estava correndo pelas suas veias, não sendo calculada por seu cérebro; pelo menos, não conscientemente. Essa mesma arte era fruto do que ele sentia, não do que planejava. Será que um quadro entenderia isso?

- Não faz muito sentido para mim... Que queres dizer?

- Tente ver dessa forma: você é arte. Ela não precisa de um motivo empurrando-a, apenas de um gatilho acionado, e assim explodem formas e cores. Se eu resolver fazer um vaso, escrever um conto ou cantar, estou querendo mostrar que sinto vontade de ser humano. E você passa a existir...

- ...Afinal, eu sou arte... Sou eu, mas meu eu é tudo que fazes para te sentir mais próximo de ti, expondo-te pra te apropriar do que imagino ser ego, ser eu, na verdade ser tu. Pintor, como é o ser humano? Como é ser humano...?

- Pois é, como posso te explicar? É mais fácil pôr assim: um animal come, descome e dorme. É natural, se espera isso dele. Ele mesmo desconhece outras ações que o confortem, não é? Mas com um homem é diferente. Ele procura além do instinto, querendo o que lhe for belo. Quando o Pintor trabalha, ele trabalha pelo prazer de gerar prazer, por meio de algo que não é necessário à vida, mas que a torna agradável de se viver!

A alegria do Pintor tomou conta de seu quadro, lhe devolvendo cores e formas vivas como um astro de luz própria. Se sentindo novamente orgulhoso, ele suspirou profundamente e olhou pela janela de seu apartamento, buscando o mundo lá fora. Viu uma cidade densa e movimentada, um formigueiro de pessoas se locomovendo apressadas e atarefadas. O mundo que ele achou tentava esforçadamente parecer concreto e frio. Mas em cada cantinho da imagem via traços de emoção e imaginação. Seus olhos voaram da janela até pousar carinhosamente no quadro. Depois viraram para dentro de si e perguntaram quem na verdade seria a obra de arte, afinal.

Gatos

A falta de argumentos deixou ele arredio:

- Mas ela gosta de gatos!

- E qual é o maldito problema? Você já não disse que ela é maravilhosa...

Havia quase duas horas que ele buscava um motivo contrário, mas a verdade não dava trégua. Sua consciência parecia ter lhe traído, finalmente dando um basta na discussão:

- Ela representa exatamente aquilo que você busca em todas, em tudo. Ainda assim você questiona... Ela é linda, incerta e interessante. Não era isso que você buscava para si?

- É...

- Ela é difícil de se alcançar. Ainda por cima, tem problemas e experiências que você nunca teve chance de viver antes. Qual a sua dúvida, afinal?

- Na verdade...

- Ela faz...

- Ela, ela, ela! Chega de me atormentar! Já tenho dificuldade demais em assimilar a situação. Me dá um tempo.

Tentou esquecê-la, inutilmente. Fechou os olhos e se pôs a pensar. O momento pedia razão... Mais que isso, pedia racionalidade! Deveria balancear os pontos dessa relação, ainda que platônica, e julgar a validade dos benefícios de amar tal mulher. Amar era um cálculo, afinal! Ele se confortou e começou a trabalhar no assunto.

A cabeça maquinava furiosamente, até que ele percebeu a ironia de seu comportamento. Queria racionalizar algo que seu peito lhe explicava toda vez que ela falava ou apenas olhava para ele. Não adiantava querer amá-la. O que ele sentia era simplesmente orgânico com os outros fatos da vida. Perceber a inutilidade do esforço novamente trouxe à tona sua consciência:

- Diga lá, chegou a uma conclusão?

- Eu? É... Não sei. Sinceramente não sei o que pensar de tudo isso. Pode parecer estranho, mas essa pequena decisão parece mudar o jeito como eu vejo as coisas.

- Talvez não seja tão estranho. Só o fato de você ter ponderado sobre isso já te faz diferente, concorda? Eu, mesmo sendo você, estou impressionado como nós percebemos o valor do seu amor na forma como eu guio nossa vida.

- E o que eu faço agora?

- Viva. O resto deixa comigo.

- Você tem certeza?

- Não, mas eu não me importo. Imagino que nem você, não é?

- É, realmente não. Só uma coisa que me deixa meio intrigado...

- O que?

- Ela continua gostando de gatos... E agora?